UM TESTEMUNHO - (Parte 5 e Última)
por Sidónio de Freitas Branco Paes (1925-2006)
15. A actualização da Acção Católica Portuguesa
Neste clima animado e um tanto acidentado, ia-se processando o estudo da remodelação estatutária da A.C.P.. O trabalho preparatório esteve inicialmente a cargo da Comissão de Reestruturação, coordenada por José Manuel Galvão Teles, que depois foi o membro da Junta Central encarregado dessa tarefa. Mais tarde, por proposta do Conselho da Junta Central, a discussão e redacção dos textos finais, a submeter à aprovação do Episcopado esteve a cargo de uma Comissão mista, formada por delegados da Conferência Episcopal e por um grupo de diálogo eleito por aquele Conselho [1] . Os trabalhos desta Comissão mista começaram em 8 de Fevereiro de 1969, e decorreram num clima desinibido, como se de uma negociação paritária se tratasse. Partia-se de textos apresentados pelo grupo dos representantes leigos, que haviam sido elaborados na Comissão de Reestruturação e, depois, discutidos e votados pelo Conselho Nacional, em sessões plenárias. Os textos finais submetidos à aprovação da Conferência Episcopal resultavam dos consensos conseguidos na Comissão mista de diálogo.
Se noutras circunstâncias, atrás referidas, o diálogo com o Episcopado fora difícil, senão impossível, neste caso decorreu de modo franco e cordial. Apenas se registou um incidente grave devido ao facto de a Comissão Episcopal para o Apostolado dos Leigos ter decidido suspender o diálogo sobre a actualização, por José Manuel Galvão Teles (membro da equipa de leigos) ter colaborado nos cadernos do GEDOC (que tinham uma orientação de crítica à situação política). O Conselho Plenário da Junta Central não aceitou esta atitude, e aprovou a seguinte resolução, na reunião de 31 de Maio e 1 de Junho de 1969:
«I - Revisão da Comissão de Diálogo: Tendo o Conselho tomado conhecimento das razões que levaram a Comissão Episcopal a suspender o diálogo sobre a actualização da Acção Católica Portuguesa com a Comissão eleita por este Conselho em 12 de Janeiro de 1969, decidiu:
1.- ratificar a sua confiança em todos os membros da referida Comissão, nomeadamente no José Manuel Galvão Teles;
2.- continuar a considerar o José Manuel Galvão Teles como elemento competente e intérprete fiel do pensamento do Conselho no diálogo com o Episcopado sobre a actualização da A.C.;
3.- por este motivo e perante os resultados já alcançados, o Conselho manifesta a sua apreensão pela interrupção de um trabalho de diálogo que se revelou frutuoso e que ardentemente se deseja;
4.- o Conselho Plenário faz um apelo à Comissão Episcopal para que, numa atitude de diálogo, prossiga, urgentemente, o trabalho com a mesma Equipa. Neste sentido, o Conselho Plenário encarrega a Junta Central de promover as diligências necessárias» [2].
As conversações estiveram suspensas até Outubro, quando o Conselho da Junta Central decidiu prossegui-las sem a presença de Galvão Teles que, entretanto, se candidatara a deputado numa lista do CDE - o que constituía, de facto, um compromisso político partidário. Daí por diante decorreram em excelente clima e ritmo. Assim, em fins de 1970, a Comissão mista chegou a acordo sobre um projecto de Princípios Básicos orientadores da actualização que, em 24 de Junho de 1971, foram aprovados pela Conferência Episcopal, a título experimental, por cinco anos.
16. As inovações dos Princípios Básicos
O confronto destes Princípios Básicos com as Bases Orgânicas de 1933 (revistas em 1945), mostra a longa caminhada realizada pela A.C.P., na concepção do seu modo de estar na sociedade e de funcionar internamente. Trata-se de um extenso texto, muito denso de sentido, fundamentado na doutrina do Vaticano II sobre a Igreja, a sua postura no mundo contemporâneo e o apostolado dos leigos, e na longa prática da acção católica. Não cabe, aqui, transcrevê-lo na íntegra, e resumi-lo é uma tarefa difícil [3]. Tentarei apenas assinalar alguns aspectos que marcam as principais diferenças entre a concepção actual e a inicial, de 1933.
O capítulo I, Natureza e missão da Acção Católica, é o fulcro doutrinário de toda a nova concepção, e torna-a isenta das características negativas atrás referidas na formulação crítica do Bispo do Porto (cf. o parágrafo final da secção 8). Em vez da definição tradicional, que acentuava a dependência da Hierarquia, abre com a definição da finalidade e da natureza associativa (nas citações seguintes os sublinhados são nossos):
«I-1. O fim imediato da Acção Católica é o fim apostólico da Igreja: levar aos homens a mensagem e a graça de Cristo, formar-lhes as consciências e, a seu modo, penetrar e actuar com o espírito do Evangelho as realidades temporais (Cf. AA. 20 e 5). Estas dimensões do apostolado, embora se possam distinguir conceptualmente, não se podem separar na vida dos leigos - muito menos sendo estes militantes da A.C. - e constituem obrigação global desta.»
Com esta clareza meridiana são, desde logo, atribuídas à A.C.P. as três dimensões inseparáveis do apostolado dos leigos: a difusão da mensagem cristã, a formação das consciências nela, e a animação cristã da ordem temporal (segundo o termo técnico expresso no Concílio, que significa a sociedade civil). As modalidades desta tríade são a seguir especificadas. E cito, pela sua novidade, o ponto que ao último aspecto se refere:
«I-4. Relativamente à animação cristã da ordem temporal:
4.1. A A.C. deve contribuir a seu modo para a divulgação e o desenvolvimento da doutrina cristã sobre as realidades terrenas e formar nela a consciência dos leigos, designadamente pela forma expressa em 6.
4.2. Os movimentos que são A.C. devem estimular e formar os seus filiados para assumirem as suas responsabilidades e comprometerem-se como cidadãos no trabalho de construção do mundo, sobretudo da sociedade portuguesa, segundo as exigências cristãs.
4.3. A A.C. não deve comprometer-se com programas concretos em matéria temporal, devendo, porém, exercer a função esclarecedora e crítica da fé, em relação aos princípios que os informam. Todavia, em certos casos, supletivamente, a A.C. poderá por exigência de evangelização, sem prejuízo das suas finalidades, organizar ou cooperar em realizações de promoção humana.
4.4. No exercício do seu apostolado, segundo o método indicado em 6. e tendo em atenção 4.3., a A.C. poderá tornar públicas as declarações resultantes da aplicação dos princípios cristãos a situações e factos de vida concretos. Ao fazê-lo, por sua iniciativa e sob a responsabilidade que lhe cabe, deverá ter em conta e nunca contrariar declarações doutrinais ou orientações pastorais expressas da Hierarquia. Estas declarações, todavia, não devem ser tornadas públicas sem conhecimento e acordo prévios da Hierarquia competente.
4.5. As opções concretas, designadamente em matéria temporal, tomadas a título pessoal pelos filiados e dirigentes, não comprometem a A.C.. No entanto, como sinal de independência política da A.C., não deverão os seus dirigentes ou membros das equipas coordenadoras exercer simultaneamente funções directivas ou de propaganda em agrupamentos políticos.»
O ponto I-6, acima citado, é fundamental por estabelecer a revisão de vida como metodologia da A.C.P., e marca o novo estilo que se vinha praticando:
«6. O apostolado que a A.C. como movimento de leigos deve realizar, implica:
6.1. Prestar atenção aos acontecimentos e descobrir neles as aspirações e necessidades dos indivíduos e da sociedade, tendo em conta especialmente aqueles que se imponham pela sua generalidade e frequência.
6.2. Formular, à luz do Evangelho e do Magistério da Igreja, um juízo sobre o valor e significado das realidades descobertas, procurando discernir os apelos de Deus presentes na vida.
6.3. Desenvolver uma acção dinâmica, pessoal e de grupo, pela palavra e pela actuação, que seja testemunho do Evangelho, resposta cristã aos problemas do homem, de modo a imbuir de espírito cristão as diversas comunidades e meios.»
Novidade também era a afirmação do princípio de bilateralidade na cooperação entre a A.C.P. e a Hierarquia. O ponto I-8 reconhece que «a A.C. coopera com a Hierarquia pondo a experiência dos leigos, inseridos nas diversas comunidades e meios, ao serviço da Igreja, no estudo das circunstâncias e condições em que a Pastoral se há-de realizar, bem como na elaboração e execução dos respectivos planos».
E o ponto I-9 prevê um duplo movimento de comunicação com a Hierarquia, ascendente e descendente, ao estipular que a A.C. tem «particular responsabilidade em tornar presente a Igreja nos diversos meios e comunidades de vida» e, por outro lado, possui «qualificada competência para tornar presentes à Igreja as realidades, valores e problemas nuns e noutras descobertos.»
Como nota distintiva, é reconhecido um laço particularmente estreito entre a A.C. e a Hierarquia, pelo facto de o apostolado da A.C. se realizar «em regime de mais directa co-responsabilidade com a Hierarquia na missão apostólica da Igreja, (...) em coordenação com o apostolado da Hierarquia e por se ordenar mais directa e amplamente à realização dos objectivos pastorais da Igreja» (cf. I-14).
Esta «vinculação mais directa e imediata pelo facto de a Hierarquia a unir mais intimamente ao seu próprio múnus, e, consequentemente, assumir nela responsabilidade especial», implica pertencer ao Episcopado «a superior orientação da A.C. (cf. AA. 20, d)» (I-15.). Esta orientação abdica do poder executivo, a função de Director Nacional deixa de existir. «As relações orgânicas da A.C.P. com o Episcopado, a nível nacional far-se-ão entre o Conselho nacional da A.C.P. e a Conferência Episcopal Metropolitana» (cf. IV-5.1); e as relações habituais serão entre a Equipa Executiva Nacional e um «Bispo para isso designado pela Conferência Episcopal» (cf. IV-5.2). E, como é próprio de um acordo negociado, a «superior orientação» era especificada e circunscrita, no último ponto deste primeiro capítulo, que embora longo é importante transcrever na íntegra:
«I-16. Esta superior orientação, que respeita sempre a natureza e distinção de ambas as partes e não tira aos leigos a necessária liberdade de acção (cf. AA. 24), situa-se num plano diferente da direcção laical e concretiza-se do seguinte modo:
16.1. Reconhecimento e declaração oficial de que um determinado Movimento é ou não é de Acção Católica;
16.2. Aprovação dos Estatutos dos Movimentos que são Acção Católica;
16.3. Aprovação dos planos gerais de acção de conjunto, decididos pelo Conselho Plenário Nacional ou por cada um dos Conselhos Plenários Diocesanos;
16.4. Aprovação dos candidatos a dirigentes a nível nacional ou diocesano, bem como sua exclusão, ou mesmo a destituição de dirigentes em exercício, sempre que, por actos da sua conduta pessoal ou no exercício das suas funções, sejam gravemente infiéis à natureza e missão da Acção Católica, tal como são definidas neste documento;
16.5. Nomeação dos assistentes;
16.6. Atenção à formação dos filiados e à preservação da doutrina e da ordem tendo em conta o bem comum da Igreja (cf. AA. 24), o que fará especialmente pela acção dos assistentes;
16.7. Proposição clara dos princípios relativos ao valor das realidades terrestres e à sua ordenação ao serviço da pessoa humana, considerada a sua vocação temporal e eterna;
16.8. Reconhecimento e definição do papel e lugar que, de acordo com as suas características essenciais, cabe à A.C. na pastoral orgânica, ouvindo a sua opinião e considerando a sua experiência;
16.9. Apoio à A.C. que incentive o trabalho dos dirigentes e assistentes, compartilhando os seus problemas e realizações e ajudando-os nas suas dificuldades;
16.10. Tomar conhecimento do relatório anual e contas da A.C. em plano nacional e em cada Diocese.»
Os capítulos seguintes [4] estabelecem as disposições para a A.C.P. se organizar e funcionar como uma federação de Movimentos, constituídos e dirigidos por leigos; dirigentes que são eleitos pelos órgãos associativos de deliberação, entre candidatos que, só nos âmbitos nacional e diocesanos, são previamente aprovados pela Hierarquia. As Juntas foram substituídas por Equipas Executivas, uma em cada diocese e uma nacional. Dotadas de funções directivas, emergem dos Conselhos Diocesanos e Nacional formados, aqueles, pelos presidentes diocesanos dos Movimentos, este, pelos respectivos presidentes nacionais e pelos presidentes dos Conselhos Diocesanos.
Cada um dos Conselhos elege o seu presidente e dois secretários, que o são também da Equipa Executiva, competindo ao presidente escolher os restantes membros, em número aprovado pelo Conselho (do qual também farão parte). Assim a A.C.P. passa a estruturar-se a partir da base para o vértice, e a funcionar, segundo regras participativas, em resposta às realidades vividas pelos militantes, nos diversos meios sociais e níveis estruturais.
Pretendeu-se criar uma estrutura associativa do laicado, com uma amplitude abrangente de toda a sociedade. A sua relação privilegiada com a Hierarquia Eclesiástica, traduzia-se na orientação doutrinal e em certos poderes de supervisão bem delimitados. Mas a orientação e a responsabilidade da acção pertencia aos leigos. E assim permitia uma maior latitude de intervenção sem comprometer o Episcopado. Era uma aposta ousada, menos sujeita do que anterior a possíveis ambiguidades, mas não isenta delas. Seria possível cumpri-la, na situação portuguesa de então?...
17. O declínio da Acção Católica Portuguesa
Os tempos, entretanto, estavam mudando rapidamente, e a época pós-conciliar via acentuarem-se tensões demolidoras dentro da Igreja, atingindo por vezes níveis de ruptura. Em Portugal, os exemplos mais dramáticos foram os casos do Padre Nascimento, do Padre Felicidade Alves e da Capela do Rato. No fim da década de 1960 e início dos anos 1970, padres abandonam o sacerdócio, cristãos separam-se da Igreja, militantes de escol deixam a Acção Católica, sem que se encontrem vias de conciliação e concórdia. Politicamente, as tensões também se agravam com o fracasso da breve primavera do Marcelismo, e a persistência desesperada e inglória das guerras coloniais, sem quaisquer tentativas de solução pacificadora (para além do manifesto frustrado do General Spínola).
Neste ambiente crescentemente hostil, a A.C.P. não conseguiu reestruturar-se, nem revitalizar-se, segundo o modelo proposto pelos Princípios Básicos. A situação parece tão mais paradoxal quanto estes Princípios, longamente meditados e laboriosamente negociados com a Hierarquia, criavam, como vimos, as condições desejadas para a A.C.P. se estruturar de forma democrática, e agir com maior grau de autonomia e responsabilidade.
Foi então que saí da Junta Central, por motivos de ordem profissional, mas também desgostoso pela forma como se processavam as relações do Episcopado com a Acção Católica. Lembro-me que quando me despedi do Cardeal Cerejeira, sempre em termos cordiais, o Senhor Patriarca disse que tinha esperado ser possível unir os leigos cristãos para uma acção comum. Só que, na situação sócio-política portuguesa de então era impossível pensar num «cor unum et anima una» (como propunha o velho lema da A.C.P.).
Não tendo acompanhado o que aconteceu desde fins de 1970, vou socorrer-me da opinião autorizada do Cónego António dos Santos, no já citado artigo Revisão Histórica da Acção Católica Portuguesa, que assim o descreve:
«Após a elaboração e aprovação das Bases, esperava-se uma viragem, um recomeço de vida nova; que um novo dinamismo impulsionasse os diversos Movimentos da A.C. para não só reencontrarem a sua identidade, como ocuparem o seu lugar específico na Pastoral da Igreja. Isto não aconteceu. Pelo contrário, a crise acentuou-se cada vez mais, na década de 70. Muitos militantes abandonaram os Movimentos. Uns por cansaço, outros por não concordarem com as orientações dadas, por acharem que os Movimentos eram pouco reivindicativos, não se comprometiam na vida, não assumiam posições concretas nos problemas da vida nacional» (op. cit., p. 41) [5].
Parece que um clima de desencanto se vai insinuando, tanto do lado dos leigos, como da Hierarquia, assim caracterizado pelo Cónego António dos Santos:
«Surgiram as dúvidas e as suspeições. Os que ficaram, em número reduzido, também se interrogavam sobre a validade da sua presença e actuação. Dir-se-ia que a A.C.P. estava entregue à sua sorte. Apesar das declarações oficiais de aprovação e de apreço, havia reticências e, concretamente, não se viu um esforço sério para clarificar a situação e ajudar a sair do impasse. A A.C. perdeu, nestes anos, parte da sua credibilidade. (...) O Episcopado ao aprovar as Bases, tinha aprovado o período de cinco anos de experiência. Parece-nos que pouco ou nada se tentou nesse sentido e a experiência processou-se no vazio e na quase indiferença. O problema não era de textos, de instrumentos jurídicos, era, principalmente, de pessoas. Era um problema de orientação doutrinária e, também, de discernimento» (op. cit., pp. 41-43).
Sem uma investigação aprofundada (que implica a consulta de documentos hoje inacessíveis) não é possível detectar as causas múltiplas desta paradoxal decadência. Não podendo empreendê-la, limitar-me-ei a aventar uma hipótese que se me afigura plausível. A hipótese de ter prevalecido no sector mais influente do Episcopado um complexo de receio e desconfiança em relação aos Princípios Básicos. É certo que estes haviam obtido o acordo da Comissão delegada pela Conferência Episcopal. Por isso tinham de ser aprovados. Mas importava armar-se de cautelas, para moderar a dinâmica resultante da sua aplicação. E pela experiência recente, essa dinâmica ameaçava tomar proporções inquietantes para a estratégia conciliadora desde há anos seguida pela Hierarquia da Igreja para com o Estado Novo. Esta hipótese encontra sustento em duas ordens de factos.
O êxito na concretização da nova estrutura e a sua coesão dependiam, em grande parte, da constituição de Equipas Executivas diocesanas e nacional que, como dissemos, emanassem dos Movimentos, e estivessem profundamente empenhadas no processo de actualização. Tal não sucedeu, porque, em Outubro de 1970, aproveitando a minha saída e de outros membros da Junta Central, o Cardeal Patriarca (ainda Director Nacional da A.C.P.) nomeou novos dirigentes «que na sua maioria não estavam ligados ao trabalho realizado». Fê-lo sem adoptar o procedimento prescrito nos Princípios Básicos (já aprovados na Comissão mista, mas ainda não na Conferência Episcopal), nem consultar os Presidentes Gerais dos Organismos e das Juntas Diocesanas [6]. E, depois da aprovação, a situação não foi prontamente corrigida.
Como observa o Cónego António dos Santos: «A própria Equipa dirigente, no plano Nacional, que acompanhou a elaboração das Bases, desapareceu. Vieram para a Equipa Executiva Nacional novos dirigentes, que na sua maioria não estavam ligados ao trabalho realizado. Pareciam até, um pouco estranhos à organização, e desconhecidos pelos dirigentes dos Movimentos, embora revelassem boa vontade. Isto criou algumas hesitações e equívocos, e a própria Equipa Nacional sentiu-se isolada. Os Boletins da A.C.P. dos anos 71 e 72 e que são os últimos, revelam isso mesmo. Revelam, até, um certo pessimismo e angústia» (op. cit., p. 43).
Um sinal dessa tão estranha apatia está patente no Boletim da A.C.P. (n.º 402, Julho a Dezembro de 1971). Ao justificar os atraso na publicação, o novo Secretário Geral mostra pouco entusiasmo pela orgânica definida nos Princípios Básicos, que critica em vários pontos, e faz esta espantosa confissão: «Com a aprovação dos Princípios Básicos, e dada a ténue estrutura unitária que neles se consagra, muitas dúvidas nos assaltaram sobre a pertinência de um Boletim (...) de toda a Acção Católica Portuguesa: foi sobretudo a intenção de não comprometer este último reduto de unidade orgânica (...) o intuito de legar a quem suceder, após este breve interregno, uma sombra do último traço de união de toda a Acção Católica: dele se fará o que estiver nos desejos dos futuros responsáveis».
Os Princípios Básicos estavam em vigor desde 24 de Junho, e em fins de Dezembro nada a Junta Central fizera para dinamizar as alterações estruturais. O simples facto de qualificar de «ténue» a nova «estrutura unitária» e considerar o Boletim «o último reduto da unidade orgânica» (sic!) só pode revelar a falta de entendimento do dinamismo de que os Princípios eram expressão e pretendiam ainda catalizar. A nova forma da A.C.P. era federativa - já o dissemos -, mas a experiência dos últimos anos de facto também o fora. Durante a preparação da actualização, a Junta Central e o seu Conselho foram o principal motor e factor de unidade; e assim tinham de continuar até passarem o testemunho aos futuros Conselho e Equipa Nacionais.
A cessação desta dinâmica desmotivou, por certo, os militantes dos Movimentos que muito esperavam da aplicação dos Princípios, impulsionada por quem tivesse vivido a sua génese, e se devotasse a pô-los em prática. Foi, seguramente, uma das causas principais do inadmissível «interregno», no qual a Acção Católica perdeu o passado dinamismo; e começou a esboroar-se a sua unidade, que os Princípios também consagravam, embora noutros moldes.
Outro sinal convergente descobrimo-lo na análise comparativa dos Princípios Básicos com o texto da Carta Pastoral da Conferência Episcopal, de 27/6/1971, que os aprovou e prefaciou. Ao aprovar os Princípios Básicos, sem qualquer alteração, o Episcopado, ipso factu, fazia-os seus, e recriava a Acção Católica fundada na doutrina, abundante e conciliar, que os imbuía e justificava. Assim sendo, num limite de síntese, bastaria anteceder o texto dos Princípios de uma a breve introdução decisória. Mas se pretendesse exercer mais extensamente a sua legítima missão doutrinal, podia, na Carta Pastoral, explicar essa mesma doutrina, confirmá-la, reforçá-la, mas sem deixar dúvidas sobre a sua validade. Caso
contrário perfilava-se a figura de uma contradição.
Qualquer legislador, quando promulga um diploma legal, fá-lo anteceder de um preâmbulo doutrinário, em que fundamenta o objectivo e a oportunidade das disposições tomadas e das alterações introduzidas ao statu quo. Ora, no nosso caso, vamos ver que assim não acontece.
A sensação que muitos tivemos, ao lê-la, foi de que a Carta Pastoral (não obstante a sua riqueza doutrinária) ao aprovar «de bom grado» os Princípios Básicos, não os perfilhava plenamente. E, em vez de relevar, justificar e valorizar a sua concepção e as inovações que traziam (como seria legítimo esperar) preferia expor uma doutrina geral que parecia antes infirmá-las. Sendo o conceito de Acção Católica abstracto, é susceptível de várias concretizações institucionais. A cooperação dos leigos com a Hierarquia na missão apostólica da Igreja traduziu-se em estruturas diferentes, nos diversos países em que foi criada. Os Princípios propunham o modelo concreto que a Comissão mista de delegados episcopais e leigos considerara a mais adequada, hic et nunc, para a futura organização e funcionamento da A.C.P.. Mas a Pastoral deixa sérias dúvidas que assim seja. Sem assumir uma atitude crítica aos nossos Bispos - com quem sempre mantive e mantenho relações respeitosas da sua dignidade de Sucessores dos Apóstolos, e de muitos muito recebi, com uma amizade nunca esmorecida -, nem ousar uma análise exaustiva, procurarei indicar alguns dos aspectos que então causaram essa sensação de incerteza e mal estar.
18. Carta Pastoral versus Princípios Básicos ...
A Carta Pastoral começa por aprovar e publicar os Princípios Básicos [7], e logo elogia a A.C.P. em termos calorosos [8]. Com plena oportunidade, esboça a seguir um quadro dramático de problemas ético-sociais e eclesiais, julgados os mais graves:
«Em particular, preocupa-nos, no nosso país, a escassez das vocações sacerdotais, a ignorância religiosa e a debilidade cristã de vastos sectores da população, a desafecção eclesial de alguns jovens e adultos, a invadente corrupção dos costumes, o perigo do laicismo que ameaça as famílias e as instituições sociais, a "miséria imerecida" que oprime muitas pessoas do nosso meio rural, a injustiça que desumaniza as relações de trabalho e gera o ódio no coração dos operários, a contestação que, dentro e fora da Igreja, opõe grupos contra outros grupos e dificulta o crescimento do Reino de Deus na terra.»
Questões ingentes, é claro, que também apoquentavam a A.C.P.. Nota-se, porém, a omissão significativa de algumas de natureza estrutural, tais como as restrições ao exercício dos direitos humanos, que a Acção Católica, como vimos, vinha criticando, e insistindo com o Episcopado para que sobre eles tomasse posição. Seria uma óptima ocasião, que fica desaproveitada, pois que, nessa área, apenas são mencionadas «a miséria imerecida» nos meios rurais, e «a injustiça que desumaniza as relações de trabalho e gera o ódio no coração dos operários».
De seguida, o mandato dos leigos é renovado, mas os termos são os da Base I de 1933, não os dos Princípios: «Como na hora da sua fundação, repetimos hoje à Acção Católica Portuguesa o convite solene para que continue a trabalhar ardorosamente na vinha do Senhor e renovamos-lhe o honroso encargo de connosco e sob a nossa superior orientação, "difundir e defender os princípios católicos na vida individual, familiar e social" [9]».
Esta formulação foi recebida com certa amargura por muitos militantes que tanto se esforçavam por dar à A.C.P. um rosto actual e outro, bem diferente do que recebera à nascença (havia quase 40 anos), porque outros eram os sinais dos tempos. Impressão que mais se acentua no capítulo seguinte, onde é longamente versado um dos temas que, afinal, mais preocupava o Episcopado: a Fidelidade da A. C. P. à sua natureza e missão. São estas, tal como nos Princípios, definidas nos termos do Concílio Vaticano II: «Por essência, a Acção Católica é a organização do laicado que, sob a superior orientação da Hierarquia e em estreita cooperação com ela, assume a responsabilidade da direcção laical do Movimento e tem como finalidade imediata o fim apostólico da Igreja» [10]. A doutrina estava certa (e era a dos Princípios) mas a nota soava mal: insistir tanto na óbvia fidelidade denotava um velado receio de que ela estaria ameaçada...
Ao enunciar as quatro notas essenciais da Acção Católica, a Carta Pastoral firma-as no n.º 20 do decreto conciliar Apostolicam Actuositatem, que também fundamentava os Princípios Básicos; mas acrescenta-lhe outras citações e comentários, cuja hermenêutica não pode senão confundir o conceito de Acção Católica que na realidade se pretende. Fica-se com uma séria impressão de que o Episcopado temia o que fariam os leigos do modelo que sancionava. E em vez de lhe justificar as virtudes, preferiu prevenir os aspectos aonde mais receava que os seus mais íntimos colaboradores se transviassem. Numa análise resumida, entre outros destaco os seguintes:
1º) Ao afirmar que Acção Católica é «apostolado organizado» (op. cit., n.º 7), tocava-se no ponto em que os Princípios mais alteravam o formato de 1933, complexo e burocratizado, como anotámos. Mas a nada se refere a Pastoral, além de generalidades, e de uma ocasional depreciação das «estruturas de quadros burocratizados» (sem reconhecer que os Princípios desburocratizam as anteriores estruturas!); quando não era só (nem principalmente) mudar as estruturas o que se pretendia, mas as relações entre os Movimentos, os Órgãos de Coordenação, os modos de funcionar e de estar no mundo [11].
2º) Quando glosa a nota de que «a Acção Católica é organização de leigos» (op. cit., n.º 8), a Pastoral acentua sobretudo a cooperação com o clero - e a preeminência deste. Para tal cita um texto conciliar do Decreto Sobre os Sacerdotes, manifestamente fora do contexto, por não ser específico da relação sacerdotes-leigos na A.C., e que vem projectar uma inesperada sombra de clericalismo [12]. O dever lembrado aos leigos tem, de novo, carácter genérico e não contextual : «Como todos os fiéis, devem os leigos abraçar prontamente, com obediência cristã, as coisas que os sagrados pastores, representantes de Cristo, determinarem na sua qualidade de mestres e guias na Igreja» (Lumen Gentium, 37); e a insistência, pouco depois, acentua a sensação de desconfiança: «Estamos certos que os nossos filhos do laicado saberão sempre oferecer aos seus pastores a obediência e a oração, a reverência e o amor exigidos pela fé cristã» (op. cit., n.º 8). Não há, neste ponto, qualquer referência ao Assistentes Eclesiástico, mas apenas a «clero», «sacerdotes», «pastores». E, no entanto, os Princípios dedicam-lhe logo o capítulo II a valorizando muito a sua missão, desde o ponto II-1.1: « O Assistente da A.C., em virtude e no âmbito da missão recebida da Hierarquia, é presença desta no interior do movimento e aí assegura, de forma orgânica, a cooperação directa com o apostolado hierárquico, na realização dos fins próprios da A.C.»; e a quem reconhecem uma «função de natureza ministerial ou hierárquica» (II-1.2), mas não directiva (II-2.1).
3º) A estreita colaboração com a Hierarquia é, também, tratada de modo demasiado geral. Não falta o apelo ao diálogo e à colaboração nos planos da pastoral [13] (que eu saiba, este apelo não teve grande concretização prática, embora venha bem explícito na Lumen Gentium, 37). Mas a Pastoral insiste sobretudo na «superior orientação da Hierarquia», a que atribui especial intensidade: «Esta relação (hierárquica) é, no caso da Acção Católica, a mais densa e sólida que a Igreja conhece e utiliza para ordenar a cooperação entre laicado e Hierarquia, nas tarefas comuns da evangelização» (op. cit., n.º 9) [14]. O «clericalismo invasor» é expressamente prevenido, mas percebemos que o que está em causa é o receio da «autonomia laical» [15]. É este um dos aspectos que fica mais ambíguo, porque, já o vimos, fora acordado nos Princípios que a superior orientação da Hierarquia (essencial à Acção Católica) se exerceria, na futura A.C.P., em matérias e por formas delimitadas com grande precisão (cf. I-16).
4º) O ponto 10 da Pastoral começa (mas sem o dizer) tal qual o artigo inicial dos Princípios (cf. I-1), só a redacção é ligeiramente diferente: «À Acção Católica tem por finalidade imediata o fim apostólico da Igreja». E cita, à mesma, o artigo essencial do decreto conciliar sobre o apostolado dos leigos (Apostolicam Actuositatem, 20). Mas só no parágrafo seguinte é que se refere explicitamente aos Princípios, pondo em relevo aquela das três dimensões do apostolado da Acção Católica que (assim fica a parecer) mais seria de temer que fosse descurada, e não a mais específica da condição laical: «Verificamos, com agrado, que a Acção Católica Portuguesa do presente, ao elaborar os princípios fundamentais que a hão-de reger no futuro, concedeu suficiente atenção e relevo à natureza religiosa do seu apostolado. Exortamo-la vivamente a manter-se fiel a esta perspectiva que tanto a dignifica e constituirá sempre o selo da sua autenticidade».
5º) No mesmo ponto e no seguinte é abordado um dos temas que mais devia preocupar o Episcopado: a animação cristã da ordem temporal (como se dizia, então, da sociedade civil). Há que reconhecer que a Pastoral trata este tema sensível trazendo contributos doutrinais convergentes com os Princípios, (sobretudo no seu capítulo III - Metodologia e Espiritualidade da Acção Católica). Mas, embora sem o infirmar, persiste em não relevar o que há de novo em relação às Bases de 1933. Que não é só questão metodológica, mas existencial, e vem logo à cabeça deste capítulo: «III-1. Presença na vida. O estilo dos Movimentos da A.C. caracteriza-se por uma atenção constante e profunda à vida concreta dos homens, numa perspectiva cristã. Isto implica: Uma presença comprometida dos seus militantes no meio; uma acção com todos os homens, cristãos ou não, participando com eles na promoção integral e colectiva desse meio». Sublinhamos as duas frases cruciais que significam uma mudança de orientação não sublinhada pela Pastoral. Ao cabo de trinta e muitos anos de prática apostólica, os Movimentos da A.C.P. não queriam mais ser os «Batalhões de Cristo Rei». A relação com os não cristãos do próprio meio deixara de ser a da conquista, mas a do testemunho evangélico num trabalho solidário de combate aos factores de alienação e opressão (materiais e espirituais, é claro) que impedem o «desenvolvimento do homem todo e de todos os homens» (cf. Populorum Progressio, ), e obstam à conversão cristã. Mas a Pastoral fiel ao antigo conceito advoga um apostolado vindo de fora, e não brotando de dentro, de um trabalho com as pessoas do meio, animado por pelo espírito cristão [16].
6º) Se entre as três dimensões de apostolado da Acção Católica, os Princípios dão relevo à «animação cristã da ordem temporal», que compete primordialmente aos leigos, a Pastoral parece reduzi-la à «formação das consciências», isto é, ao confronto das «realidades políticas contingentes com a luz eterna do Evangelho», como «preparação» dos militantes para «o empenhamento directo nas acções concretas» [17], e não como reflexão essencial para a tomada de posição e a acção dos Movimentos. É o ver e julgar, mas sem o agir - o agir que, neste domínio, é tarefa individual do militante, mas parece não ser missão também dos Movimentos. Por demais, a Pastoral insiste no campo político, quando os Princípios não o visam mais do que as demais esferas da vida social.
19. O fim da Acção Católica Portuguesa
As causas da queda vertical da A.C.P., por certo numerosas, serão talvez um dia elucidadas por quem tenha competência para tal, e acesso ás fontes de informação. Na responsabilidade que sinto de dar um testemunho sincero, aqui deixo estas pistas que tornam credível a hipótese atrás aventada e a seguir reformulada, para concluir.
A opinião prevalecente na Conferência Episcopal terá receado que a A.C.P., reorganizada a partir dos Princípios Básicos, e encabeçada por uma Equipa Nacional empenhada nessa metamorfose, e num apostolado visando a crítica e a transformação, não só dos indivíduos, mas das estruturas sociais, se tornasse um incómodo factor de disfunção, e levasse à ruptura as crescentes tensões na Igreja, e entre Igreja e Estado. As opções moderadoras que tomou, mesmo causando a desmotivação de muitos militantes dos mais activos, seriam então um mal menor.
Por seu turno, os leigos e os Assistentes mais entusiastas da actualização terão compreendido que o modelo decorrente dos Princípios Básicos, de uma federação de Movimentos trabalhando democraticamente, e assumindo as suas decisões e responsabilidades de intervenção na sociedade, não era aceite pelo Episcopado: que não era esta a forma desejada pela Hierarquia para a cooperação dos leigos no apostolado da Igreja, na convulsiva situação portuguesa de 1970. O Cónego António dos Santos acrescenta, com autoridade, estes factores de dissolução:
«Muitos militantes abandonaram os Movimentos. Uns, por cansaço, outros por não concordarem com as orientações dadas, outros por acharem que os movimentos eram pouco reivindicativos, não se comprometiam na vida, não assumiam posições concretas nos problemas da vida nacional.
Os Assistentes de base, na maioria párocos, deixaram de dar assistência aos grupos de militantes, desinteressavam-se da sua existência, e, nalguns casos, não aceitavam a A.C. (...)» (op. cit., p. 41).
Mesmo quando, em 1972, os Princípios Básicos começaram a ser postos em prática, a nova Equipa Nacional estava possuída de uma apatia pessimista e funérea, traduzida no editorial do Boletim da A.C.P. (nº 406, ano 1972) - os sublinhados são nossos:
«(...) E que entendemos, que queremos concretamente fazer neste momento? A este respeito também o juízo dos outros e da Igreja toda, se nos não fecharmos no novo orgulho, é o elemento mais esclarecedor: que pensa a sociedade, a Igreja, da Acção Católica? Apercebe-se de que ainda existe? Com que obras lhe provamos que ainda existimos, se é que existimos?...» E noutro passo anuncia o óbito iminente: «Enquanto se não atacarem os problemas de fundo, força é reconhecer que a Acção Católica se encontra moribunda, privada que está hoje de qualquer atracção dinâmica para um laicado em crescimento evidente, dilacerada por divisões profundas que se atenuaram mas cujas causas permanecem, sofrendo com particular intensidade de uma crise de Igreja a que se referem as significativas palavras do Papa que neste número transcrevemos».
E se, nesses tristes anos, a Acção Católica se foi assim definhando, entre apatias, desinteresses e conflitos, não pode sobreviver ao tremendo choque social, às crises e transformações profundas que sucederam à revolução de 25 de Abril de 1974. Com efeito, em 1976, a Conferência Episcopal suspendeu a A.C.P., como estrutura unitária e integradora dos Movimentos, deixando ao critério destes a decisão de solicitarem ser ou não ser Acção Católica.
Foi uma nova época que se abriu, e ainda é cedo para ser avaliada. Alguns Movimentos pediram ao Episcopado a qualidade de Acção Católica e a aprovação de novos estatutos, e algumas Juntas Diocesanas ainda persistem. Segundo as novas tendências são, em geral, grupos coesos de pequena dimensão. O grandioso «exército de Cristo-Rei», combatendo na frente da «restauração cristã do indivíduo, da família e da sociedade», concebido e organizado em 1933, foi um sonho que passou. A Acção Católica do futuro será necessariamente diferente, se é que não prevalecerá antes o conceito mais amplo e flexível de Apostolado dos Leigos. E, de facto, no Portugal de hoje, são sobretudo Obras e Movimentos diversos, de espiritualidade ou apostolado, que mais florescem. Talvez seja esta a face do laicado na Igreja no século XXI.
20. Balanço sucinto da Acção Católica Portuguesa
É muito difícil fazer o balanço do enorme trabalho realizado pela Acção Católica Portuguesa. Numa síntese necessariamente provisória, destacarei alguns aspectos mais salientes.
O magnífico desígnio inicial nunca foi realizado na sua totalidade. Era manifestamente utópico, com suas ressonâncias de anacrónico espírito de Cruzada, que nunca foi integralmente assumido. E no entanto o ideal de leigos se devotarem a uma acção apostólica em íntima colaboração e sob a superior orientação da Hierarquia, galvanizou uma multidão de católicos, como nunca se vira no Portugal em processo de secularização da sociedade.
Desde o fim da Guerra, uma nova geração de militantes já fazia uma diferente leitura dos sinais dos tempos. A caminhada espiritual da Igreja, que culminou no Concílio, apontava para outro estilo de apostolado. A formação doutrinal, a vivência espiritual e a prática apostólica que a própria Acção Católica proporcionava é que levaram os militantes a substituir esse espírito de conquista por um ideal de presença no mundo, de solidariedade com os não crentes na transformação das mentalidades e da sociedade, de dentro e desde a base, e não imposta de fora e de cima.
Neste contexto, a organização complexa, rígida e burocrática das Bases Orgânicas de 1933 depressa se revelou uma construção teórica desajustada às novas espiritualidade e dinâmica apostólica. Mas quando o longo e reflectido trabalho de reestruturação se completou, as bruscas mudanças na sociedade portuguesa, as convulsões internas à Igreja e o aparecimento de novos modos e organismos de apostolado dos leigos, deram o golpe final na majestosa instituição.
Entretanto, a A.C.P. fizera uma obra extraordinária. Entusiasmou e dinamizou numerosos cristãos portugueses, na exigência de uma vida e de um testemunho segundo o Evangelho, formou-os não só no ensino teológico e social da Igreja, mas também na reflexão sobre a situação e os problemas da sociedade. Criou núcleos de solidariedade para com os que estavam material, espiritual ou socialmente humilhados e oprimidos. Afirmou uma presença cristã nunca antes conseguida pelo laicado, em muitas e variadas manifestações públicas, em reuniões concorridas e publicações difundidas, e sobretudo na vida quotidiana. Contribuiu decisivamente para uma mais profunda descoberta de Cristo e da espiritualidade cristã a uma multidão de crentes e não crentes, e para manifestar a doutrina evangélica e do Magistério da Igreja no seio de uma sociedade hostil, durante um regime político totalitário. Ao longo de quatro décadas de severas limitações dos direitos do homem, em particular do direito de associação, de informação e livre expressão do pensamento, permitiu que numerosos cristãos pudessem exercer esses direitos (embora com muitas vicissitudes), numa participação colectiva no apostolado da Igreja.
As dificuldades foram consideráveis, a desconfiança do Governo não deixou de crescer, e o Episcopado nunca quis correr riscos de perder as prerrogativas custosamente recuperadas pela Concordata - incluindo o direito de associação e publicação com fins religiosos, que permitiu organizar a própria Acção Católica. Mas, ao exercê-lo, nunca deixou de questionar a sociedade e a política e a cultura estabelecidas. Em verdade, pode dizer-se que A.C.P. representou mesmo a face da Igreja inconformada e intransigente quanto às injustiças do regime político e da vida social. Não foi a única associação cristã a afrontar as injustiças sociais e políticas, mas foi a mais influente e mais representativa da Igreja, na estreita cooperação dos cristãos leigos com os Assistentes Eclesiásticos e com os Bispos.
Os muitos militantes que devotaram com entusiasmo uma larga parte da sua vida à Acção Católica, e dela muito receberam, não estão por certo arrependidos. Alguns ainda permanecem em organizações católicas, outros estão activos em associações civis, sindicatos, meios de comunicação social, empresas, na administração pública, em partidos e órgãos políticos. Nenhuma outra escola formou e treinou tantas mulheres e tantos homens para as novas estruturas sociais democráticas emergentes do 25 de Abril. Esta foi uma tarefa que também a A.C.P. realizou (até pela prática de ela própria funcionar democraticamente nos seus últimos tempos). Não a cumpriu como objectivo principal, mas como imperativo de consciência e supletivamente, quando o regime político não permitia que outros movimentos o fizessem. Deste enorme trabalho é o País credor à Igreja.
A fórmula de uma organização constituída e dirigida por leigos ser mandatada para participar no apostolado hierárquico da Igreja, foi considerada providencial. No seu nobre objectivo de uma acção solidária no seio da Igreja pareceu viável e funcionou durante décadas. Mas, entendida de modo estrito, como foi em Portugal, escondia uma perigosa contradição. A ciência da organização ensina que uma associação colectiva tem de ter uma única linha de comando hierárquico. A Acção Católica era uma organização de leigos, tinha corpos deliberativos e directivos formados por leigos. Mas o Episcopado nunca renunciou à superior orientação, com controlo e poder de veto das decisões e documentos, sobretudo os destinados a projecção externa. Era esta, dizia-se, a sua forma de colaboração com o laicado, inerente ao seu poder doutrinal e pastoral - recebido de Cristo através dos Apóstolos - e que, em Portugal, nunca quis delegar nos leigos. Este facto (que significava uma contradição estrutural) criou um foco de tensão interna que, nos tempos revoltos do aggiornamento pós-conciliar, e com a correspondente valorização da condição laical na Igreja, se agravou ao ponto da rotura.
Seria uma ilusão sonhar com uma federação de Movimentos de apostolado leigo estruturado e funcionando democraticamente, e que ao mesmo tempo constituía um organismo oficial da Igreja, cuja orgânica interna é aristocrática, por essência e secular tradição histórica? Continuo a pensar que não. Mas era uma empresa arriscada e, na situação portuguesa de então, os riscos pagavam-se caros. Que o digam tantos que se arriscaram, O Bispo do Porto, os Padres Manuel Rocha e Abel Varzim, os Padres Felicidade e Nascimento, tantos militantes leigos e Assistentes Eclesiásticos. Mas a Acção Católica Portuguesa, ousou ter esse sonho, e pô-lo em prática, e correr esses riscos de mostrar uma face da Igreja Portuguesa intrépida e resistente contra as injustiças sociais e políticas, sem nunca descurar a tarefa de fundo que é a metanóia, a profunda conversão da mentalidade e do comportamento das pessoas. De resto, repito, tanto quanto eu saiba, a motivação essencial da A.C.P. nunca foi política mas apostólica cristã. Ao contrário de Itália, por exemplo, a A.C.P. nunca sofreu a tentação de instaurar uma democracia cristã.
O sonho que a actualização da Acção Católica acalentou era mais viável no regime democrático que hoje vigora em Portugal. Mas, por outro lado, esse mesmo regime atrai os cristãos para uma multiplicidade de instituições e tarefas da sociedade civil. E embora subsistam, em Portugal, injustiças e situações de miséria e opressão material e moral, não seria possível reorganizar um movimento apostólico com dezenas de milhar de militantes. O apostolado mantém plena exigência, mas há-de fazer-se, mais individual que colectivo, no âmago da própria sociedade, como o evangélico «fermento levedando a massa» - assim o propunham os Princípios Básicos de 1970.
A que vivemos foi talvez uma aventura quixotesca, votada à falência. Mas a semente foi lançada, germinou (até noutras árvores), deu frutos... Pela minha parte, não hesito em afirmar: valeu a pena, foi uma experiência magnífica- embora frustrante -, nesses tempos duros mas fascinantes, de muitos desafios, tempos de luta e de grandes esperanças. Deo gratias!
Lisboa, 24 de Junho de 1996
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[1] A composição deste grupo era a seguinte: Dr. Loureiro de Amorim (Presidente da Junta Diocesana de Braga), Eng. Jorge Jardim Gonçalves (Presidente da Junta Diocesana do Porto), Maria Palmira Lopes (Presidente da JOCF.), Maria Fernanda Morna (da Equipa Nacional LIC/F) e Eng. João Duarte Cunha (Presidente da Equipa Nacional da JUC), Dr. José Manuel Galvão Teles (pela Comissão de Actualização) e Eng. Sidónio Paes (pela Junta Central). Os delegados do Episcopado era presidida pelo Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa e constituída pela Comissão Episcopal para o Apostolado dos Leigos. Quando o Senhor D. António Ribeiro foi eleito Presidente desta Comissão, passou a liderar o grupo episcopal de diálogo, desde meados de 1969 (cf. Boletim da A.C.P., nº 394, pp. 18 e 19, e nº 395, p. 42).
[2] Texto transcrito dos Votos e Conclusões do Conselho Plenário da Junta Central da A.C.P.( Ref.ª 282 / 68-69). Dentro da Igreja havia, aliás, uma facção conservadora que desconfiava do espírito da actualização. Um sinal dessa tendência foi o artigo de Galamba de Oliveira Acção Católica ou Partido Político, publicado no semanário A Voz de Domingo (nº 1859). Como Secretário Geral da Junta Central respondi rebatendo os argumentos expostos, numa carta que aquele semanário publicou, omitindo a introdução (cf. Boletim da A.C.P., nº 393, Janeiro a Março de 1969, pp. 12-17).
[3] Os Princípios Básicos estão publicados, juntamente com a Carta Pastoral do Episcopado que os promulgou, no Boletim da A. C. P. nº 402, de 1971.
[4] II. O Assistente da Acção Católica; III. Metodologia e espiritualidade da Acção católica; IV. Especialização e estrutura.
[5] Se o Padre Santos que muito prezo me permite um reparo, diria que, depois da aprovação dos Princípios Básicos, não se tratava, para os Movimentos tanto de «reencontrarem a sua identidade», mas de a afirmarem plenamente, pois que já a vinham antes progressivamente «encontrando», numa prática que deu forma aos Princípios Básicos.
[6] O novo Secretário Geral era António Sousa Franco, cristão irrepreensível, vocacionado para uma notável carreira pública e política, mas que não tinha pretígio na A.C.P., e não participara no processo de actualização. Como jurista mas era julgado pelo Episcopado capaz de regulamentar devidamente os Princípios Básicos. Mas, no termos processuais nestes prescritos, nunca seria um candidato elegível.
[7] «Reunidos em Assembleia Plenária no santuário de Nossa Senhora de Fátima, os Bispos da metrópole sentem-se felizes por ver concluída a primeira fase desse meritório trabalho e, de bom grado, aprovam por um período experimental de cinco anos, os Princípios da A.C.P., renovada à luz do Concílio. Ao mesmo tempo, manifestam a esperança de que, em breve, seja alcançado o termo das fases posteriores de actualização, nomeadamente as relativas à elaboração de um Estatuto orgânico, comum aos vários Movimentos da A.C.P. e dos Regulamentos julgados necessários. Estes instrumentos jurídicos, tendo em conta os Princípios Básicos, agora aprovados, deverão jurídicos, tendo em conta os Princípios Básicos, agora aprovados, deverão garantir a indispensável unidade e a legítima autonomia dos Movimentos apostólicos que a integram.»
[8] «Apraz-nos ainda reafirmar à Acção Católica a confiança que sempre nela temos depositado. Se consuderarmos o seu passado, também entre nós ela é credora de especial menção de apreço que o Concílio lhe fez, e, com justiça dela disseram os Bispos da Metrópole em 1966: "Lançada oficialmente em Portugal, na alvorada da renovação da vida religiosa do país, sob os auspícios da Virgem de fátima e precisamente quando a sua maternal mensagem começava a frutificar em graça e vida interior nas almas, ao denodado esforço dos pioneiros da Acção Católica e dos seus continuadores se deve, em grande parte, o admirável florescimento da vida cristã das nossas dioceses e paróquias. A ela se devem os passos decisivos para uma consciencialização apostólica do laicado, as primeiras iniciativas sérias, em plano nacional, para o incremento e a participação activa no culto litúrgico. Para a restauração e edificação da família, para a mentalização cristã dos diferentes meios sociais".»
[9] Cfr. Base I da A. C. P.: Guia da Acção Católica Portuguesa (União Gráfica, Lisboa, 1953), p. 3.
[10] Cf. Decreto Apostolicam Actuositatem, nº 20.
[11] Exorta assim à organização: «Deste modo, a Acção Católica, para ser fiel a si mesma, jamais descurará os aspectos organizativos essenciais, que não se reduzem a simples estruturas de quadros burocráticos, mas se concretizam em formas de associação orgânica, reflexo do dinamismo próprio da Igreja» (op. cit., nº 7). Mas recorda que há algo mais importante do que as estruturas: «A renovação da Acção Católica, como aliás da Igreja inteira, depende menos da mudança das estruturas do que da conversão interior dos corações. Renovar as estruturas, os métodos de trabalho e os programas de acção é mais fácil do que renovar os espíritos, tarefa esta sempre urgente e necessária para correspondermos ao apelo do Evangelho...» (op. cit., nº 13). Mas não confirma que os Princípios não esqueceram esse requisito básico.
[12] «Devem os sacerdotes estar à frente, de tal modo que, sem procurarem os próprios interesses mas os de Jesus Cristo, trabalhem na obra comum com os leigos e vivam no meio deles segundo o exemplo do Mestre que se pôs entre os homens, "não para ser servido, mas para servir e dar a vida pela redenção de muitos" (Mt. 20, 28). Os sacerdotes reconheçam e promovam sinceramente a dignidade e participação própria dos leigos na missão da Igreja. Estejam dispostos a ouvir os leigos, considerando fraternalmente os seus desejos, reconhecendo a experiência e competência deles nos diversos campos da actividade humana, para que juntamente com eles, possam reconhecer os sinais dos tempos. Sabendo discernir se os espíritos vêm de Deus, prescrutem com sentido de fé, reconheçam com alegria e promovam com diligência os multiformes carismas dos leigos, tanto os humildes como os sublimes. (...) Entreguem aos leigos, com confiança, encargos do serviço da Igreja, deixando-lhes espaço e liberdade de acção, convidando-os mesmo a oportunamente terem a iniciativa de empreendimentos. (Decreto Presbyterorum Ordinis, 10)» (cf. op. cit., nº 8; os sublinhados são nossos)
[13] «Bem gostaríamos que todos os pastores de almas pusessem em prática estas directivas conciliares [de novo do decreto conciliar sobre os sacerdotes, Presbyterorum Ordinis, 10] e, feitos irmãos entre irmãos, com os leigos estudassem e ponderassem os mais ajustados planos de acção pastoral a empreender conjuntamente, em benefício do Reino de Deus.» (op. cit., nº 8)
[14] E acrescenta: «Para a Acção Católica, aceitar a superior orientação da Hierarquia significa, entre outras coisas, aceitar a inserção explícita da própria actividade de apostolado num plano mais amplo, promovido por aqueles que Deus pôs à frente da Sua Igreja (Act. 20, 28), e estudar e harmonizar com eles os tempos, os modos e as formas de actuação, no âmbito da pastoral orgânica correspondente às exigências concretas de cada situação histórica. Esta superior orientação é consequência e sinal da intimidade vinculante que solidariza os leigos e os pastores, na profunda relação eclesial interna ao Povo de Deus e à sua presença no mundo. Ela opõe-se, por um lado, ao clericalismo invasor, e por outro, a formas ilusórias de autonomia dos laical» (op. cit., nº 9).
[15] «Esta superior orientação é consequência e sinal da intimidade vinculante que solidariza os leigos e os pastores, na profunda relação eclesial interna ao Povo de Deus e à sua presença no mundo. Ela opõe-se, por um lado, ao clericalismo invasor, e por outro a formas ilusórias de autonomia laical.» (op. cit., nº 10)
[16] Diz a Pastoral: «Queremo-la [a Acção Católica] muito presente e inserida na vida real humana. Mas sejam quais forem os problemas que afronta, jamais deixará de os ver sob o prisma religioso, isto é, na relação que directa ou indirectamente têm com a vocação e o destino sobrenatural dos homens. As questões económicas, sociais, sindicais, políticas e culturais não podem ser alheias à Acção Católica e aos seus militantes. Por elas passa o Reino de Deus, e é nelas que a fé sobrenatural e a graça de Cristo operam o milagre da restauração e divinização dos homens» (op. cit., 10). E mais adiante: «A condição laical dos militantes da Acção Católica e o estilo característico do seu método de trabalho justificam a tónica de encarnação posta na sua espiritualidade que "acolhe o mundo e os seus valores como expressão e exigência do amor de Deus, de Cristo e da Igreja".» (op. cit., 14)
[17] Sobre este aspecto tão sensível, a Carta Pastoral afirma, no nº 11: «Fiel ao seu apostolado de formação das consciências e de animação cristã de toda a ordem temporal, a Acção Católica não deixará de confrontar as realidades políticas contingentes com a luz eterna do Evangelho e do Magistério da Igreja, preparando assim os seus militantes para o empenhamento directo nas acções concretas.»
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