Este blogue é uma extensão de Entre as brumas da memória.

domingo, 16 de março de 2008

Nomes, cartas, confissões, rotas de vida. Foram parar à PIDE e ficaram lá

Nomes, cartas, confissões, rotas de vida. Foram parar à PIDE e ficaram lá
16.03.2008, Clara Viana, «Público», Caderno P2

Eles seguiam os alvos, interceptavam as cartas, tinham uma predilecção particular pela vida sexual dos que vigiavam. Eles eram a PIDE. O seu arquivo é uma arma. "Um murro no estômago." Os "alvos" falaram ao P2. Os historiadores também. Clara Viana (textos) Daniel Rocha (fotos)

Uma imersão no arquivo da PIDE tende a ser uma experiência que tritura o estômago e a alma. Os que foram espreitar à Torre do Tombo aquilo que a polícia política do Estado Novo "sabia" sobre eles acusam o choque pela "devassa da vida privada", uma das marcas de água das polícias políticas. E há os que nunca lá quiseram ir.

Seis anos depois da primeira consulta na Torre do Tombo, em Lisboa, onde o arquivo está guardado desde 1990 (passou a estar aberto ao público a partir de 1994), Helena Cabeçadas ainda sente o impacto: "Foi devastador."

Na Torre do Tombo, sede dos arquivos nacionais, Helena Cabeçadas (antropóloga, 60 anos, presa aos 16 pela PIDE, impedida de concluir o ensino secundário, trocou Lisboa por Bruxelas) abre uma pasta e fica atónita ao descobrir que começou a ser seguida pela polícia política aos 12 anos. "Já tinha tido problemas no Liceu Filipa de Lencastre por insubordinação, mas actividades políticas ainda nenhumas." Começou a ser seguida talvez por uma questão de nome - o apelido Cabeçadas remetia para o seu tio-avô almirante, um maçon republicano que desafiou Salazar, e para um primo, exilado em Argel.

Na pasta há uma fotografia com Helena de soquetes, a rir. Uma outra, que acompanhava um pedido de Bilhete de Identidade. Era frequente a polícia ficar com cópias destas requisições. Há outra coisa que a levou a ficar tão cedo sob suspeita: trocava imensa correspondência com estrangeiros, que conhecia nas férias, no campismo. Voltou a reencontrar esta correspondência no arquivo. Eles escreviam em francês e a PIDE traduzia o que interceptava, até os poemas de Aragon que ela citava em algumas missivas. Helena registou duas coisas: primeiro, as traduções eram boas; segundo, aquilo, só por si, era indicativo da "multidão" que prestava serviço à polícia.

20 mil informadores
A omnipresença da PIDE levanta obrigatoriamente a questão de quem informou. Nos meses a seguir ao 25 de Abril de 1974, a Comissão de Extinção da PIDE/DGS divulgou que esta dispunha de 2162 funcionários e 20 mil informadores. O número exacto continua, contudo, a ser uma incógnita, devido também, embora não só, ao facto de parte dos registos sobre informadores e agentes ter sido queimado pela polícia no próprio dia 25 de Abril.

Embora sem quantificações, o retrato do país que emerge das dezenas de milhar de páginas à guarda do arquivo é confrangedor: "Impressionou-me a quantidade de material proveniente de informadores - uma rede que chegou também aos vários países em que havia exilados portugueses", refere o ministro da Justiça, Alberto Costa, 61 anos. O governante conheceu o seu ficheiro e os de muitos outros quando, depois do 25 de Abril, regressado do exílio em França, para onde partiu em 1973, após passagem pela prisão, foi colocado na Comissão de Extinção da PIDE.

Também Marcelo Rebelo de Sousa, 60 anos, que no princípio de 2008 foi tentar apurar o que estava no Tombo sobre si, confirmou que a PIDE "era uma coisa muito tentacular". "Em cada escola existiam informadores entre os estudantes e os funcionários. Nas sessões públicas era tudo gravado. A intercepção das cartas era um facto. Havia um acompanhamento muito de pormenor por parte de uma máquina particularmente elaborada. Não sei é se havia gente que estudasse aquilo tudo depois."

Filho de Sua Excelência
O professor de Direito e conhecido comentador televisivo descobriu que foi vigiado de perto a partir da altura em que entrou para a Faculdade de Direito: "Penso que nasci para a PIDE aos 16 anos." O pai de Marcelo, Baltazar Rebelo de Sousa, foi governador-geral de Moçambique, ministro da Saúde e depois do Ultramar. Era um dignitário do regime, o que nunca era esquecido nas anotações que a PIDE fazia sobre o filho, que alinhava pela oposição liberal.

Uma aproximação à descrição que era feita dele nas notas da polícia: "Fulano de tal [eu], que tem ideias perigosas, por sinal filho de Sua Excelência o Sr. Governador ou Ministro, consoante as alturas, estava a distribuir propaganda subversiva no dia x às tantas horas" ou a "colar cartazes" - o que se fazia de madrugada, mas nem por isso deixavam de aparecer as horas certas mencionadas.

Numa outra pasta, estão reunidos os artigos que escreveu para a imprensa entre 1966 e 1970, sobretudo na Capital, um diário já extinto. Estes artigos não eram só escritos por ele, existiam outros autores, mas todos eram assinados com o nome "Coesus". Um registo do professor: apesar desse nome colectivo, a PIDE identificou a sua pertença - "É curioso."

Também foi seguida em pormenor sua actividade na SEDES - o movimento que ainda recentemente denunciou o mal-estar que está a tomar conta da sociedade portuguesa. Devido a esta vigilância, Marcelo Rebelo de Sousa deparou-se com um prognóstico que fizera numa sessão em Leiria, em Janeiro de 1973, já não muito longe do 25 de Abril, que entretanto esquecera. A sessão fora gravada e "reproduzidas ipsis verbis as intervenções efectuadas, por exemplo por Sá Carneiro". Ele, Marcelo, respondeu a uma pergunta sobre os militares: disse que "estavam agitados, em ruptura com o regime, que achava inevitável um golpe de força e que isso ia acontecer a muito curto prazo".

Marcelo Rebelo de Sousa tinha "alguma noção" da vigilância a que estava sujeito. Quanto mais não fosse porque, por vezes, o pai, com acesso a informação privilegiada, lá lhe dizia: "Já sei que estiveste outra vez em casa de..." Geralmente essa casa era a de António Reis (PS), que colaborava na revista da oposição Seara Nova e "era casado com uma comunista": "Depois do 25 de Abril, descobriu-se que o porteiro da casa dele era da PIDE."

O sociólogo António Barreto, 66 anos, ex-PC, exilado na Suíça entre 1963 e 1974, por se ter recusado a participar na guerra colonial, consultou os seus processos feitos pela PIDE no princípio dos anos 90. "Em poucas semanas, tudo me foi mostrado. Era o princípio da abertura, as coisas ainda não estavam suficientemente bem organizadas. Nos documentos que me diziam respeito, havia "informações e "denúncias" assinadas por pessoas ainda vivas, o que é proibido por lei. Fiquei a saber que um "amigo" de Coimbra e outro de Genebra eram informadores da polícia e tinham-me denunciado."

Informadores protegidos
Actualmente, o tempo de libertação de processos para consulta pode ir até aos nove meses. Depende se aqueles já se encontram identificados, se é preciso seguir-lhes o rasto, e também do grau de expurgo a que deverão ser submetidos. Chama-se expurgo ao acto de "limpar" as folhas preenchidas pela PIDE de "dados pessoais de carácter judicial, policial ou clínico", entre outros considerados de foro íntimo. É uma condição imposta por lei.

A amplitude da limpeza depende do estatuto do requerente: todas as pessoas podem ter acesso a todos os processos, mas os próprios terão sempre acesso a mais informações do que terceiros, mesmo quando estes são investigadores.

Sem paciência para preencher requisições e submeter-se a um intervalo de espera, Rebelo de Sousa, por exemplo, viu apenas o que outros já tinham visto de si. Uma das suas curiosidades maiores não foi satisfeita: nada sobre o seu tempo no Expresso, de que foi um dos fundadores em 1973, constava daquelas pastas já prontas a servir.

Na Torre do Tombo, o respeito do direito à privacidade imposto por lei é dificultado pelo que foi o modus operandi da PIDE: quase todos os processos estão repletos de informações cruzadas, a cada nome referido acrescentavam-se dados, introduziam-se referências pessoais de amigos, vizinhos. Muito deste material era depois utilizado nos interrogatórios, como arma de pressão.
A filtragem deste tipo de documentação é também dificultada por uma grande escassez de meios. O arquivo da PIDE que chegou à Torre do Tombo é composto por mais de seis milhões de fichas, 500 livros e 20 mil caixas cheias de processos. Mas no gabinete de expurgo trabalham três pessoas.

Este contraste entre o gigantismo dos resultados do trabalho policial e os meios liliputianos ao dispor dos seus actuais guardiões é inquietante. "No arquivo da PIDE está a intimidade das pessoas", adverte a historiadora Irene Pimentel, 57 anos, militante da extrema-esquerda antes do 25 de Abril, também "fichada" pela polícia, vencedora do Prémio Pessoa 2007 pela investigação que tem desenvolvido sobre o Estado Novo, de que resultou, entre outras obras, uma tese de doutoramento e um livro sobre a PIDE.
Devido em grande parte às precauções adoptadas pela própria polícia, os nomes dos informadores estão geralmente protegidos: na sua grande maioria encontram-se em código.

Já as vítimas encontram-se mais expostas. Seja devido a nomes ou situações que escapam ao expurgo, seja pela migração e papéis entre vários processos, um método comum da PIDE, seja por outras razões. Acontece, por vezes, que se saiba sobre alguém aquilo que não é legítimo saber: o nome de um amante, um tipo de relação, a data de um aborto, as confissões durante um interrogatório.

Irene Pimentel descobriu, por exemplo, que uma pessoa que conhece muito bem "falou" na prisão. Num dos muitos processos que consultou, deparou com a confissão que o próprio, obrigado pela polícia, escrevera, com a assinatura por baixo. "Senti que estava a ver o que não devia", confessa a investigadora. Ao longo de seis anos de pesquisas na Torre do Tombo, não foi a única vez que teve essa sensação.

Terminado o mergulho, subsistem as dúvidas que nasceram nesse percurso: qual o grau de restrição que deveria ser aplicado no acesso aos documentos? O que deve ser ainda preservado e o que deve ser dado a conhecer? Porque é o arquivista o censor? Que poder lhes está a ser dado?

Roubos e discriminação
José Mattoso, 74 anos, um dos mais reputados historiadores portugueses, director do Tombo
entre 1996 e 1998, adverte para os riscos de "uma utilização pouco escrupulosa" de um arquivo como este, que é constituído por "documentação de uma instituição especializada na devassa da vida privada, não só dos inimigos do regime, mas também e toda a espécie de suspeitos". Irene Pimentel adianta: há suspeitas de que material deste arquivo tenha já sido utilizado para chantagem em Portugal e Angola. E Mattoso adverte: "A curiosidade perversa dos agentes da PIDE transformou-se em predilecção por tudo o que pudesse desacreditar os membros da oposição, em particular a vida sexual. Por ouro lado, o uso e o abuso da tortura levaram a uma discriminação entre os que "falavam" e os que resistiam, com o consequente opróbio e humilhação dos primeiros. Esta distinção ficou marcada até hoje. Todavia pertence à vida privada. Mesmo que seja conhecida, não pode ser usada enquanto afectar a pessoa em causa. A meu ver, deve existir o maior escrúpulo em manter oculto aquilo que a lei protege (a vida privada) e evitar juízos morais sobre o comportamento pessoal seja de quem for."

O arquivo da PIDE não chegou à Torre do Tombo intacto. Uma parte foi destruída pela própria polícia política; outra, mais substancial, foi roubada depois do 25 de Abril de 1974, nomeadamente durante o período de oito anos em que esta documentação esteve à guarda da Comissão de Extinção da PIDE/DGS, em Caxias.

O roubo foi perpetrado tanto por particulares, como por organizações e partidos políticos, sobretudo pelo PCP. Sabe-se agora que, na sequência destes actos, uma parte foi parar a Moscovo.

"Nos anos 1975 a 1977, estando eu no Governo [como titular das pastas do Comércio e da Agricultura], alguém, cujo nome esqueci, aproximou-se de mim, na rua, mostrou-me dois ou três documentos sem importância, mas que provinham dos arquivos da PIDE. Ambos me diziam respeito. Recusei a "oferta", assim como o negócio que me propunha: pagar à página os restantes documentos que ele disse que teria em casa ou a que teria acesso", conta António Barreto.

Em 1998, o escritor comunista Mário de Carvalho - hoje com 70 anos, sob vigilância desde 1967, preso em 1971 quando estava na tropa, partiu para o exílio na Suécia no ano seguinte - saiu desiludido da sua incursão à Torre do Tombo. Dos vários dossiers referenciados em seu nome, desaparecera "curiosamente" aquele que deveria conter os relatórios da vigilância policial e as informações que sobre ele foram prestadas por "bufos". Era a parte em que estava mais interessado. "Estão lá imensos elementos processuais. Muitas cartas minhas, da Suécia, ou que me foram dirigidas pela minha mulher, por familiares. Mas não consegui apurar nada que não fosse burocrático", conta. Por exemplo, este ofício datado de 1970, com origem no gabinete do Ministro do Interior, e por via do qual ficou vedado o seu acesso a um posto na Direcção-Geral das Alfândegas, a que concorrera: "Não oferece garantia de cooperar na prossecução dos fins superiores do Estado." Outra informação dava conta da sua inscrição no Cineclube Universitário, com o nº 1559. A inscrição nesta associação era um passaporte certo para se ficar sob a mira da polícia. Na informação sobre Mário de Carvalho, a PIDE explica porquê: o cineclube era considerado de "tendência esquerdista, dado que na sua direcção estavam membros do "pcp" [escrito assim, em minúsculas] e de outras correntes avançadas".

Mário de Carvalho continua a não saber até onde iam as informações em poder da polícia, mas já então sabia que estava a ser seguido. Ainda hoje se lembra da matrícula do carro que o acompanhava. Ficaram-lhe também outras coisas: "Consigo ver sem ser visto, ainda tenho esse reflexo. Saber quem vem atrás de mim."

Cartas que não chegaram
Dos cinco dossiers referenciados em nome de Helena Cabeçadas desapareceram três. Mas o que viu naqueles que restaram chegou e sobejou. Em Bruxelas, as suas actividades políticas continuaram a ser reportadas para Lisboa. Por vezes através de relatórios escritos em francês, provavelmente oriundos da polícia de estrangeiros belga. António Barreto também viu descritas as suas actividades no exílio: "Fiquei chocado, mas não necessariamente surpreendido, quando verifiquei que havia pequenas informações enviadas por polícias estrangeiras (nomeadamente a francesa) sobre as minhas deslocações nesses países."

Mas o mais chocante, para todos eles, foi a descoberta das cartas. Na altura, as pessoas falavam pouco por telefone (não estava em todo o lado, era caro e de pouca confiança) e, claro, não existia Internet nem correio electrónico. Por isso, escreviam-se cartas. Muitas e com muitas páginas. As que foram escritas por aqueles que se encontravam sob vigilância, ou as que lhes eram dirigidas, acabaram, na maior parte das vezes, nas mãos da polícia política.

Muitas vezes, a PIDE ficava com os originais e as cartas nunca chegavam ao seu destino. Outra vezes fazia cópias (por exemplo, batendo à máquina o que lá estava escrito) e reencaminhava depois os originais para os destinatários. Não era raro acrescentar algo.

Aos 16 anos, Maria Eugénia Varela Gomes, que hoje tem 52, e era de uma família da oposição activa ao regime, recebeu uma carta escrita da Alemanha pelo seu namorado de então e que vinha acompanhada com uma fotografia pornográfica. Naquele tempo uma imagem destas estava muito longe de ser algo quase banal como o é actualmente. A relação só não acabou de imediato porque a mãe dela lhe revelou que era uma das manhas habituais da PIDE, que ela própria já tinha recebido algo parecido. O poder também se exercia assim.

Na Torre do Tombo, uma das muitas cartas que Helena Cabeçadas descobriu era de um namorado. Outra da sua maior amiga de então, onde lhe contava a história em curso do "seu primeiro grande amor", laboriosamente anotada nas margens pelos polícias do regime. É outra marca: aos nomes citados acrescentavam-se os respectivos apelidos e números de processo.
Quem não encontrava no ficheiro, logo era referenciado: "Abra-se processo em nome de..."

Na carta para Helena onde a sua grande amiga relatava a descoberta do amor, e que nunca lhe chegou às mãos, estavam anotados vários "comentários ordinários". Fora conspurcada. Como a sua fotografia: "Eu tão nova, com um sorriso lindo, e aqueles pides, durante todo aquele tempo, podiam olhar para mim. E aquelas cartas! Deu-me uma zanga, uma revolta!"

Confissões sob tortura
Joana Lopes, 70 anos, doutorada em Lógica Matemática - nos anos 60 e 70 activista dos grupos próximos do que se designou chamar "católicos progressistas", sobre quem escreveu recentemente um livro, Brumas da Memória - encontrou no Tombo o que esperava: "Tudo o que se relacionava com envolvimentos públicos; abaixo-assinados, relatórios sobre instituições a que pertencia." Mas constatou que felizmente a PIDE nada apurara sobre as suas actividades clandestinas. E deparou-se também com algo de que não estava à espera e que foi o que mais a chocou: "Um processo só com cartas, absolutamente pessoais, incluindo a de um namorado. Algumas eram de pessoas a quem já não reconhecia a letra nem a assinatura - mas estavam devidamente identificadas pela PIDE. Trinta e tal anos depois, foi um verdadeiro murro no estômago, que me deixou uma noite sem dormir."

E de que é feita a História quando os arquivos policiais são a fonte? José Mattoso é veemente: "A utilização do arquivo da PIDE para averiguar factos históricos ou actos pessoais, como acontece com todos os fundos arquivísticos análogos, exige precauções críticas especiais, devido ao facto de as informações nele existentes se destinarem sistematicamente à acusação de suspeitos e não à sua defesa. A sua incriminação não se limita aos delitos políticos e actividades subversivas; baseia-se em meras suspeitas, muitas vezes abusivas ou infundadas, e alastra sobre a vida privada; usa o testemunho de informadores ansiosos por demonstrar o seu zelo, e inclui confissões arrancadas sob tortura."

Outra constatação de Joana Lopes após a sua incursão à Torre do Tombo: "Vi que os agentes inventavam coisas para mostrar serviço. Isto pôs-me de pé atrás em termos de fiabilidade sobre o que encontrei nos processos de outras pessoas." Nos dias em que esteve no Tombo, aconteceu a Joana Lopes isto: "Ao mergulhar na leitura, não só dos meus processos mas, sobretudo, de alguns mais "pesados", tive um tal sentimento de voltar à realidade do fascismo que dei por mim a olhar à volta como se estivesse a ser vigiada, como se ler aqueles papéis fosse uma actividade perigosa e clandestina."

O arquivo da PIDE continua a ser uma arma, que paradoxalmente hoje poderá afectar mais as vítimas do que os vitimadores.

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É preciso tempo para ir à Torre do Tombo, mas só isso não chega

16.03.2008
Eles também estão nos arquivos da PIDE, mas até hoje evitaram ser confrontados com aquela memória. Reveladoramente, foi o que fez a maioria das 16 pessoas ouvidas pelo P2: não foram. Alegam falta de tempo, desinteresse, desprezo. Nunca medo, mas arquivos como este podem ser poços de descrença. Como sucedeu na ex-RDA, quando se descobriu que quase todos espiavam quase todos, independentemente de laços de sangue ou de amizade.

O actual ministro da Justiça, Alberto Costa, viu o seu processo logo após o 25 de Abril de 1974, quando foi colocado na Comissão de Extinção da PIDE/DGS. Não voltou a procurá-lo na Torre Tombo: "Há dias ofereceram-me uma cópia do documento, assinado pelo director da PIDE, que ditou a minha exclusão da lista da CDE [oposição democrática] de Leiria em 1969, e regressei por
momentos a esse mundo. Mas repetir essa viagem não faz parte das minhas prioridades."

Desde 1994, altura em que o arquivo da PIDE passou a estar aberto ao público na Torre do Tombo, foram feitos cerca de 21 mil pedidos de consulta. Nos arquivos nacionais ainda não se fez a contabilidade de quantos foram feitos pelos que têm o nome nos processos e de quantos foram feitos por investigadores. Há um corrupio deles, nacionais e estrangeiros. Por vezes, são estes investigadores que decidem entregar cópias às pessoas cujo passado estiveram a pesquisar, e que evitam lá ir.

É assim que o deputado socialista Manuel Alegre, 72 anos, preso em 1963 e que partiu para o exílio no ano seguinte, e o músico Sérgio Godinho, 63 anos, sob suspeita desde a gravação, em França, do primeiro disco, têm sabido por terceiros partes do que a PIDE sabia sobre eles. Aquilo a que os investigadores têm acesso é sempre menos do que os próprios, mas esta possibilidade de ir mais além não convence nem um, nem outro.

Manuel Alegre: "Conheço a minha vida. Mas o que diz respeito a eventuais denúncias e informadores, que era o que me podia interessar, está-me vedado." Sérgio Godinho: "Não sou um investigador de mim mesmo, nem sou um herói do antifascismo. Talvez lá vá um dia, mas não estou à espera de nada que seja chocante."

Odete Santos, 67 anos, vigiada desde a Faculdade de Direito, advogada e deputada do PCP até ao ano passado, revela que o seu processo está identificado com a indicação de que foi proibida de ser funcionária pública. Era um dos castigos aplicados aos opositores ou suspeitos de tal. Não sabe mais: "Não fui ver o meu processo por falta de tempo, por desleixo. Irei agora que tenho mais vagar."

Segundo Saldanha Sanches, fiscalista, 62 anos, que esteve preso durante mais de seis anos, em arquivos como este existem duas coisas que "devem ser extremamente chocantes" e podem justificar o receio de uma incursão pelos documentos da PIDE. Uma é ser-se confrontado "com depoimentos de pessoas amigas, a incriminar-nos"; a outra é ser-se confrontado consigo próprio: "Ler as declarações que se fez, extraídas depois de uma coacção fortíssima, sob tortura. Naquelas confissões há uma série de pormenores que, 30 anos depois, os próprios já esqueceram. Tudo descrito em pormenor e depois o nome assinado por baixo. As pessoas que falaram, ficaram sempre com esse fardo e serem confrontados depois com isso, tantos anos depois...." Ele não foi ainda consultar o seu processo, porque a ocasião não se apresentou.

A procuradora Maria José Morgado, 56 anos, que estava presa no 25 de Abril, considera que "não vale a pena ter medos" como estes. Nos tempos a seguir à revolução, viu o seu processo na Boa Hora, onde iria ser julgada por crimes contra a segurança do Estado (foi amnistiada com o fim do regime). "Vi também as minhas declarações nos interrogatórios que, como é óbvio, se resumiam a isto: "recuso-me a prestar declarações"." Não voltou a consultar o seu caso: "Não tenho vida para consultar arquivos pessoais."

Francisco Louçã, 52 anos, preso em 1972 na capela do Rato e hoje dirigente do Bloco de Esquerda, tentou ir ver, mas quando pediu o seu processo, este "estava emprestado" ao arquitecto Nuno Teotónio Pereira, preso com ele no mesmo dia. "O realizador de um documentário fez-me o favor de me enviar a foto da prisão." Antes do mais "por uma questão de personalidade", o deputado do BE João Semedo, 57 anos, médico, preso em 1972, também não viu: "Nunca senti qualquer curiosidade ou interesse em saber o que a PIDE sabia sobre a minha vida. Acho que essa curiosidade acabou no dia 25 de Abril. É um passado que enriqueceu quem o viveu e que, de certa forma, nos enriqueceu a todos como geração. Do passado, bastam-me essas marcas. Não sinto qualquer necessidade de voltar a esse passado, ainda por cima pela escrita sórdida e canhestra de um qualquer pide."

O historiador José Mattoso, que foi director da Torre do Tombo, não esconde o seu desprezo: "À pergunta que me é feita para saber se tenho ficha na PIDE e se consultei o meu eventual processo, respondo que não sei, nem me interessa. Assumi sempre a responsabilidade dos meus actos públicos e privados, é-me indiferente o que se possa pensar a meu respeito. Não me parece, em todo o caso, que o arquivo da PIDE seja o lugar ideal para, a partir dele, traçar a minha biografia."

segunda-feira, 10 de março de 2008

«Saudades de D.Afonso»

NUNO PACHECO - P2, Público 10/3/2008

Isto de Portugal andar como anda dá volta ao miolo das pessoas. Há dias, num daqueles fóruns radiofónicos matinais onde o povo desabafa o que lhe vem à cabeça, uma ouvinte deixou sair esta frase lapidar: "Eu já nem digo que tenho saudades do Salazar... Mas tenho saudades do D. Afonso Henriques!"

Se virmos bem, todos temos. Como se fosse ontem, que não nos traia a memória. Foi algures entre um Sócrates e outro, o ateniense, muitos séculos antes, e o de Vilar de Maçada, muitos séculos depois. E reza a história que o seu reinado durou 46 anos (Salazar ficar-se-ia pelos 40, por causa da tal cadeira). Se fizessem agora um Conta-me como foi baseado na aventura afonsina não lhe faltariam combates, conquistas e reconquistas, manhas e vassalagens e tudo o que mais povoou esses anos em que Portugal nasceu e ficou relativamente barato: em 1143, após a conferência de Zamora, o ex-infante e já então rei D. Afonso Henriques, comprometeu-se a pagar ao Papa quatro onças em ouro pela protecção de Roma. Todos os anos. Muito menos, comparativamente, do que cada português paga agora anualmente ao fisco para não ser rei nem senhor de coisíssima nenhuma.

Mas adiante. Pois esses tempos em que D. Afonso andava a conquistar castelos à mãe, por aversão a cumplicidades galegas e aos tronos de Leão e Castela, só podem mesmo deixar profundas saudades aos portugueses que neles viveram. Invasão aqui, saque ali, a pátria erguia-se a contento, ainda sem algarves nem ilhas para atrapalhar, desafiando à vez castelhanos e sarracenos. Era tal, aliás, a fúria conquistadora do intrépido Afonso que Fernando II de Leão teve de prendê-lo para que desistisse de conquistar Badajoz. No nosso tempo, correspondia a mandar uma criança de castigo para o quarto depois da milésima patifaria, mas naquela época (não tão distante assim, como nos provou a ouvinte dela saudosa) era um pouco mais duro. Seja como for, D. Afonso quis mesmo deitar a mão a Badajoz, falhou, e foi preso para prometer que não voltava a repetir a façanha. Não voltou. Mas urdiu logo outras, bem mais imaginativas. E lá foi Geraldo Geraldes, o Sem Pavor, atirar-se a Beja ou D. Sancho aventurar-se no Guadalquivir.

Mas era uma época harmónica, sem dúvida, onde cotas só havia as de malha metálica e onde as mulheres, em vez de serem professoras e se cansarem a lutar contra ministras da Educação, eram postas a fiar linho e a suspirar pelos seus amados guerreiros, ai Deus e u é. Isto nas cortes, porque fora delas a arraia-miúda escassa história deixava para contar, a não ser um rol de maleitas e misérias a que poucos ou nenhuns prestavam atenção. Mas sim, era uma época muito saudosa, nem vamos sequer pôr isso em dúvida. E tudo há apenas escassíssimos oito séculos, como não nos havíamos de lembrar? E não se recordam da Lusitânia, dos castros e das citânias, da velha Olissipo? Isso sim, é que era vida saudável... Também nos lembramos, claro, e temos saudades, do Portugal próspero, moderno, justo e sempre livre. Mas não é fácil ter saudades do futuro.

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