Senhor D. Manuel Clemente, Cardeal-Patriarca de Lisboa
Senhor D. António Moiteiro, Bispo de Aveiro
com conhecimento a
Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa
Núncio Apostólico
Comissão Episcopal da Educação Cristã e Doutrina da Fé
e meios de comunicação social
Queremos dizer, com a franqueza de cristãos que é devida aos nossos bispos, que o vosso apoio subscrevendo e associando-se ao manifesto “Em defesa das Liberdades de Educação” contra a obrigatoriedade das aulas de “Educação para a Cidadania e Desenvolvimento” no ensino básico nos decepcionou e desgostou muitíssimo. Melhor dizendo, envergonhou-nos! – enquanto cidadãos, cristãos e católicos. E, porque estes sentimentos se têm vindo a repetir na sequência de outras vossas posições públicas, e da CEP, entendemos ser nosso dever e, passado o calor do primeiro momento, escrever-vos para vos dizer isso mesmo: a assinatura do referido manifesto é uma desastrada forma de intervenção cívica, sendo objectivamente sentida como uma agressão aos católicos que não se reveem nesse documento.
Nos jornais e nas redes sociais abundam hoje esclarecimentos e bons argumentos que, em consciência, obrigam – este parece ser mesmo o melhor termo – a que as pessoas livres, responsáveis, serenas e portadoras de valores democráticos não possam concordar com o absurdo de tornar o eixo educacional da cidadania referendável à opinião dos encarregados de educação. Tal seria insuportável tanto mais que, observados os conteúdos programáticos da disciplina, sob qualquer ângulo, não se vislumbram quaisquer tópicos que possam ser, em si mesmo, inconvenientes ou de qualquer forma desadequados à formação dos jovens ou, noutro plano, desconformes ao cristianismo ou à doutrina católica.
Pelo contrário, encontramos,
sim, motivos de interesse e de adequação à integridade humana, solidariedade,
civismo e decência.
Por estes motivos, não nos deteremos no argumentário. Tão pouco citaremos passagens bíblicas ou de documentos da Igreja para nos legitimarmos porque entendemos que o mero bom senso e responsabilidade cívica são suficientes, e não pretendemos, por desnecessária, uma polémica argumentativa sobre o assunto.
Mas, ainda assim, não podemos deixar de:
▪ em sintonia com o Papa
Francisco, defender a igual dignidade entre homens e mulheres;
▪ referir que a igualdade de
género – tema que facilmente antevemos como grande motivação para a vossa
tomada de posição – não é uma ideologia, como insistem erradamente a CEP e os
meios católicos conservadores; na verdade, o programa da disciplina, nesta matéria,
é uma pauta para a liberdade individual, o respeito entre todos (os filhos de
Deus) e a rejeição de discriminação e exclusão sociais, pelo que se terá de
perguntar se há algo mais cristão e fraterno que este programa de vida;
▪ afirmar que a cidadania não é
uma opção, mas simultaneamente um direito e um dever de todos, a que os
cristãos não só não se devem eximir, como por cuja concretização devem lutar;
▪ dizer que se concede,
evidentemente, que a educação não é neutra, o que nunca deveria incomodar os
subscritores do manifesto (ou pelo menos os nossos bispos) pois ela serve
sempre um propósito e este, no caso em apreço, é positivo e socialmente justo;
é, portanto, um valor e não um desvalor;
▪ conceder, por fim, que o uso dos conteúdos referidos possa ser motivo de crítica; de resto, tal ocorre com qualquer outra disciplina, o que deve levar os encarregados de educação a escrutinar serenamente a actividade escolar e participar, na justa medida das suas competências, na vida das escolas.
Ora é neste contexto que queremos sublinhar aos nossos bispos que a sua associação ao manifesto foi desnecessária e política e pastoralmente irresponsável. Ela representa nova manifestação de um conservadorismo decepcionante e indesejável e novo sinal no muito preocupante movimento de aproximação (por vezes, alinhamento) entre a Igreja e forças políticas bem identificadas com a direita e mesmo com a extrema-direita – como já se verificou com a subsequente apresentação de uma proposta legislativa do Chega sobre a matéria.
Não queremos uma Igreja instrumentalizada ou de qualquer modo cúmplice – como em momentos passados – com as nuvens escuras que se adensam em muitos países de todos os continentes devido à emergência de radicalismos políticos essencialmente estimulados pelas referidas forças políticas. Muitos de nós, que vivemos grande parte da nossa vida no século XX, conhecemos demasiado bem o resultado desses radicalismos: caos, ditaduras, guerras, pobreza, desigualdade, dor e sofrimento. Nunca anunciados, estes serão os resultados do radicalismo e dos itinerários que a ele levam.
Para evitar novas associações deste tipo, desafiamos os nossos bispos e toda a Igreja que somos a ponderar melhor sobre os caminhos que trilhamos, perguntando-nos onde está Jesus Cristo nas opções que tomamos, seja no nosso dia a dia, seja no governo da Igreja: é Ele uma força de fé para o bem, motivadora de transformação e de solidariedade, ou é um instrumento ou pretexto deturpado de legitimação política?
A ambos, saudações em Cristo, o Nosso Senhor.
Lisboa, Setembro de 2020
Nuno Franco Caiado, técnico superior da Administração Pública
Alfreda Ferreira da Fonseca, professora do ensino secundário
público
André Lamas Leite, professor do ensino superior e advogado
António Cardoso Ferreira, médico de saúde pública aposentado
Emília Leitão, médica psiquiatra
Helena Topa Valentim,
professora do ensino superior
Joana Rigato, professora do ensino secundário privado
Joana Rosas, arquitecta
Jorge Wemans, jornalista
José Leitão, advogado
Leonor Xavier, jornalista e escritora
Luís Soares Barbosa, professor do ensino superior
Helena Marujo, professora do ensino superior
Manuel Brandão Alves, professor do ensino superior
Maria Conceição Moita, professora aposentada
Maria João Sande Lemos, aposentada da Administração Pública
Maria José Dias Ferreira, médica de saúde pública aposentada
Maria Paula Madeira, inspectora aposentada da Inspecção Geral
da Educação
Paulo Melo, professor do ensino básico e secundário
Rita Valério Marques, professora do ensino básico e secundário
Rui Aleixo Silva, músico, artista plástico e tradutor
Teresa Vasconcelos, professora do ensino superior
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