NUNO PACHECO - P2, Público 10/3/2008
Isto de Portugal andar como anda dá volta ao miolo das pessoas. Há dias, num daqueles fóruns radiofónicos matinais onde o povo desabafa o que lhe vem à cabeça, uma ouvinte deixou sair esta frase lapidar: "Eu já nem digo que tenho saudades do Salazar... Mas tenho saudades do D. Afonso Henriques!"
Isto de Portugal andar como anda dá volta ao miolo das pessoas. Há dias, num daqueles fóruns radiofónicos matinais onde o povo desabafa o que lhe vem à cabeça, uma ouvinte deixou sair esta frase lapidar: "Eu já nem digo que tenho saudades do Salazar... Mas tenho saudades do D. Afonso Henriques!"
Se virmos bem, todos temos. Como se fosse ontem, que não nos traia a memória. Foi algures entre um Sócrates e outro, o ateniense, muitos séculos antes, e o de Vilar de Maçada, muitos séculos depois. E reza a história que o seu reinado durou 46 anos (Salazar ficar-se-ia pelos 40, por causa da tal cadeira). Se fizessem agora um Conta-me como foi baseado na aventura afonsina não lhe faltariam combates, conquistas e reconquistas, manhas e vassalagens e tudo o que mais povoou esses anos em que Portugal nasceu e ficou relativamente barato: em 1143, após a conferência de Zamora, o ex-infante e já então rei D. Afonso Henriques, comprometeu-se a pagar ao Papa quatro onças em ouro pela protecção de Roma. Todos os anos. Muito menos, comparativamente, do que cada português paga agora anualmente ao fisco para não ser rei nem senhor de coisíssima nenhuma.
Mas adiante. Pois esses tempos em que D. Afonso andava a conquistar castelos à mãe, por aversão a cumplicidades galegas e aos tronos de Leão e Castela, só podem mesmo deixar profundas saudades aos portugueses que neles viveram. Invasão aqui, saque ali, a pátria erguia-se a contento, ainda sem algarves nem ilhas para atrapalhar, desafiando à vez castelhanos e sarracenos. Era tal, aliás, a fúria conquistadora do intrépido Afonso que Fernando II de Leão teve de prendê-lo para que desistisse de conquistar Badajoz. No nosso tempo, correspondia a mandar uma criança de castigo para o quarto depois da milésima patifaria, mas naquela época (não tão distante assim, como nos provou a ouvinte dela saudosa) era um pouco mais duro. Seja como for, D. Afonso quis mesmo deitar a mão a Badajoz, falhou, e foi preso para prometer que não voltava a repetir a façanha. Não voltou. Mas urdiu logo outras, bem mais imaginativas. E lá foi Geraldo Geraldes, o Sem Pavor, atirar-se a Beja ou D. Sancho aventurar-se no Guadalquivir.
Mas era uma época harmónica, sem dúvida, onde cotas só havia as de malha metálica e onde as mulheres, em vez de serem professoras e se cansarem a lutar contra ministras da Educação, eram postas a fiar linho e a suspirar pelos seus amados guerreiros, ai Deus e u é. Isto nas cortes, porque fora delas a arraia-miúda escassa história deixava para contar, a não ser um rol de maleitas e misérias a que poucos ou nenhuns prestavam atenção. Mas sim, era uma época muito saudosa, nem vamos sequer pôr isso em dúvida. E tudo há apenas escassíssimos oito séculos, como não nos havíamos de lembrar? E não se recordam da Lusitânia, dos castros e das citânias, da velha Olissipo? Isso sim, é que era vida saudável... Também nos lembramos, claro, e temos saudades, do Portugal próspero, moderno, justo e sempre livre. Mas não é fácil ter saudades do futuro.