A ACÇÃO CATÓLICA EM PORTUGAL
UM TESTEMUNHO - (Parte 1)
por Sidónio de Freitas Branco Paes (1925-2006)
UM TESTEMUNHO - (Parte 1)
por Sidónio de Freitas Branco Paes (1925-2006)
N.B. - Este texto, que nunca foi publicado, foi facultado pelo autor a várias entidades, nomeadamente à Universidade Católica. Pô-lo à minha disposição para o uso que entendesse dar-lhe e serviu-me de base para a elaboração de um capítulo de Entre as Brumas da Memória («Batalhões de Cristo-Rei»).
1. Introdução: as quatro épocas da Acção Católica Portuguesa
Os organizadores da semana de estudos realizada em Lisboa, 1983, na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa, sobre o tema O cristão na Igreja e no Mundo, pediram-me para falar sobre A Acção Católica em Portugal, numa perspectiva histórica e teológica. Se a Acção Católica tem sido amplamente analisada numa óptica teológica, o mesmo não sucede quanto à sua história, no nosso país. É esta uma falta grave, porque a Acção Católica Portuguesa (ACP) foi uma instituição com larga projecção e que gerou um movimento de intervenção sócio-religiosa em Portugal, sobretudo desde 1933 a 1974. Não obstante, está por fazer a recolha completa e o tratamento científico do vasto espólio constituído por documentos e possíveis testemunhos pessoais, ameaçado de se perder, em parte, à medida que as testemunhas vão morrendo ou esquecendo.[1]
Não quis escusar-me a dar o meu contributo, muito embora mais não seja que a reflexão sobre uma experiência pessoal intensamente vivida. Faltam-me, com efeito, as qualificações requeridas para uma dissertação teológica, como para uma investigação histórica. Por isso e afim de avivar a memória e suprir carências de documentação, foram-me muito úteis os trabalhos de recolha e síntese do Padre António dos Santos (hoje Cónego) e do Secretariado Nacional do Apostolado dos Leigos.[2]
O texto dessa palestra, por minha culpa, não foi publicado na ocasião. Dele conservei o manuscrito sobre o qual falei, acrescentando então comentários de que não guardei registo. O presente testemunho, preparado mais de treze anos depois, resulta desse manuscrito, revisto e acrescido de mais recentes reflexões e de mais completas citações que então evitei. As últimas secções, correspondentes à década de 1960, quando desempenhei cargos de maior responsabilidade e participei mais intensamente na ACP, foram muito ampliadas. É dessa época fascinante e turbulenta do Concílio Vaticano II e da actualização da ACP que posso dar um testemunho mais desenvolvido e documentado, mas que a limitação do tempo não me permitiu na palestra de 1983. Neste trabalho de revisão e desenvolvimento foram-me preciosos o conselho e a memória do Padre Dr. Orlando Leitão e a documentação da ACP conservada no referido projecto liderado pelo Dr. Paulo Fontes.
Como outros organismos sociais, a ACP, na forma institucional com que foi concebida, teve uma infância e adolescência, uma idade madura, uma crise (ou várias) e um declínio que conduziu à nova forma, depois de 1974. É porém sempre muito arriscado traçar a demarcação de fronteiras entre períodos históricos, a menos que haja acontecimentos de mudança abrupta e bem definida. Se tomarmos, como sugere o Cónego António dos Santos, os meados dos anos 1940 para início da época de maturidade, pouco poderei testemunhar do período de arranque e de maturação. No entanto, em 1943, quando me inscrevi na JEC, e em 1947, quando me empenhei efectivamente como militante e dirigente diocesano da JUC, estava ainda bem vivo o espírito da arrancada inicial, no qual foi formada a primeira geração que emergiu depois da instituição da ACP.
Nas secções seguintes, mais do que relato histórico ordenado segundo as regras da arte, será questão sobretudo das minhas recordações durante uma aprendizagem e uma prática como militante deste grande movimento de apostolado dos leigos.
2. A época de criação da Acção Católica Portuguesa
A ACP foi fundada em Novembro de 1933, numa época de grande vitalidade, na sociedade civil como na Igreja.
No Mundo, vencida a grande crise de 1929, vivia-se um clima de acelerado progresso tecnológico e expansão económica, no auge da segunda revolução industrial. A revolução comunista triunfante na União Soviética, agora sob a liderança de Staline, operava as profundas transformações que formaram uma das grandes superpotências que bipolarizariam o Mundo até fins de 1989. Nos Estados Unidos da América, o New Deal emergente da crise abria o caminho para a outra superpotência mundial, enquanto a Inglaterra aínda sustentava a sua prosperidade no gigantesco Império Colonial, e outros países europeus lhe seguiam o rumo, em menor escala.
Noutra linha ideológica, a Alemanha avantajava-se com a tomada de poder pelo Nazismo, enquanto em Itália o Fascismo e em Portugal o Corporativismo acendiam tentações de reviver nacionalismos e grandezas imperiais passadas. Pouco depois, no desfecho da sangrenta guerra civil, Franco instaura em Espanha um regime que lhes é afim. Ao passo que o Japão, num pertinaz processo de modernização, vai alimentando aspirações expansionistas e aumentando o poder industrial e militar. No entanto, as estratégias imperialistas, as reivindicações sociais, as gritantes desigualdades entre nações a nível mundial agravavam as tensões que conduziriam à 2.ª Guerra Mundial, e aos subsequentes movimentos de descolonização.
A Igreja também vivia uma fase intensa de renovação interna e afirmação externa. Após os ataques cerrados sofridos no século XIX e princípios do século XX, com a crescente descristianização das sociedades tradicionalmente católicas, os pontificados de Pio IX, Leão XIII, Pio X e Pio XI, com suas encíclicas sociais e de vivificação espiritual, a criação de numerosas obras religiosas e caritativas, o impulso imprimido por muitos bispos, pensadores e homens de acção granjeavam à Igreja renovado prestígio, agora mais assente na força espiritual do que no poder temporal.
Em Portugal, depois da hostilização de intelectuais e políticos do fim da Monarquia, e das reformas e perseguições após a proclamação da República, iniciara-se o revigoramento da Igreja. A figura central desse movimento era, sem dúvida, o Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, secundado por um número crescente de bispos e sacerdotes; mas nessa obra também participavam cristãos leigos, formados e activos em diversas instituições fundadas sobretudo desde o início do século, como o Centro Académico de Democracia Cristã (CADC, fundado em 1901, cujo nome era bem significativo das tendências ideológicas de então), a Liga da Acção Social Cristã (obra feminina criada em 1902, que toma este nome em 1907), a Juventude Católica Lisbonense (1908), a Federação das Juventudes Católicas Portuguesas (1913), o Centro Católico Português (1919, com o objectivo de defesa legal dos direitos da Igreja), o Corpo Nacional de Escutas (1923), a Juventude Católica Feminina (1924), a Associação dos Médicos Católicos, a Associação dos Jurisconsultos Católicos, os Círculos Católicos Operários (activos em várias dioceses); e obras de piedade, caridade e beneficência vindas em geral do estrangeiro desde meados do século XIX, como o Apostolado da Oração (1864), as Conferências de S. Vicente de Paulo (1884), a União Noelista Portuguesa (1913), a Obra de Protecção às Raparigas (1916).[3]
As aparições de Fátima, ocorridas de Maio a Outubro de 1917 (um ano antes do fim da Grande Guerra), a sua mensagem espiritual (com um laivo de ideologia política, no anúncio da conversão da Rússia) e o desenvolvimento do seu santuário como polo de atracção religiosa, a renovação pedagógica e espiritual dos seminários, a expansão da imprensa periódica e das edições católicas, a referida multiplicação das obras católicas, mobilizando e formando um crescente número de leigos para diversas formas de apostolado, constituíam sinais de vitalidade. E o novo regime político autoritário, liderado por Salazar (católico, eis seminarista e antigo dirigente do CADC), não só tolerava esta acção de revigoramento, como procurava aproveitá-la para reforço do seu poder sobre a sociedade portuguesa.
E no entanto, esta Igreja animada de nova pujança sentia-se ainda ameaçada pela cultura envolvente, pelas grandes correntes de ideias agnósticas, vindas do século XIX ou mesmo já do século XX – o liberalismo, o positivismo, o laicismo, o materialismo (quer dialéctico marxista-leninista, quer simplesmente prático) –, hostilizada por organizações poderosas, como a Maçonaria, e impedida de penetrar (por meio dos sacerdotes) nos meios sociais mais influentes (políticos, intelectuais, operários).
3. O conceito de Acção Católica e sua novidade
O conceito de Acção Católica, inventado por Pio XI com alegada inspiração divina, é marcado pela influência destas realidades vividas na Igreja e no Mundo. Segundo a célebre fórmula forjada pelo mesmo Papa, em 1931, «a Acção Católica é a participação do laicado no apostolado hierárquico da Igreja»[4] ; ou, numa mais desenvolvida explicação, é «a participação dos leigos católicos no apostolado hierárquico, para defesa dos princípios religiosos e morais, para o desenvolvimento duma sã e benéfica acção social, sob a direcção da Hierarquia Eclesiástica, fora e acima dos partidos políticos, no intento de restaurar a vida católica na família e na sociedade.»[5]
Estas definições, contendo todos os traços essenciais da nova instituição, deram azo a diversos tipos de organização. Em Portugal, o Episcopado seguiu os modelos italiano e belga, isto é, concebeu a ACP como uma estrutura unitária, envolvente e moderna.
Lendo as Bases Orgânicas e os Estatutos das Organizações e dos Organismos Especializados (revistos e unificados por volta de 1945), bem como o Manual da Acção Católica Portuguesa publicado em fins de 1935 (numa tradução do original italiano de Monsenhor Luis Civardi), fica-se impressionado pela amplitude e novidade do conceito:
1º) A ACP é criada pela Hierarquia Eclesiástica, mas como uma associação do laicado, isto é de todos os católicos leigos, organizados para cooperarem no apostolado da Igreja, mediante um mandato do Episcopado, entendido como prolongamento parcial do mandato global de Cristo aos Apóstolos. Em consequência, os Dirigentes da ACP são leigos, enquanto os Assistentes Eclesiásticos são apenas vigilantes e garantes da ortodoxia doutrinária, educadores e conselheiros dos leigos.[6]
2º) A ACP é uma estrutura nova na Igreja, com carácter nacional, supra-diocesano e extra-paroquial, embora articulada com as dioceses e as paróquias, conforme a organização tradicional da Igreja.
3º) A ACP tem carácter global, abrange toda a sociedade – os Organismos Especializados baseiam-se e dirigem-se aos diversos meios sociais – agrário ou rural, escolar, independente, operário e universitário (incluindo Associações Profissionais), às idades juvenil e adulta, e aos dois sexos (ver organograma junto).
4º) Os Organismos Especializados são coordenados a nível diocesano e nacional, pelas quatro Organizações (relativas às duas idades e aos dois sexos), pelas Juntas Diocesanas e no topo pela Junta Central, com o objectivo de assegurar uma orientação una e uma acção concorde: cor unum et anima una – era o lema da ACP.
5º) São criados quatro órgãos técnicos coordenadores, os Secretariados Económico-Social, de Cultura, Propaganda e Imprensa, do Cinema e da Rádio, de Coordenação das Obras Auxiliares.
6º) Enquanto se reconhece a necessidade de organizar os leigos e de lhes conferir um mandato eclesiástico, para que por meio deles a Igreja possa cumprir melhor a sua missão apostólica, nas sociedades modernas, recorre-se a um método objectivo de apostolado – ver, julgar e agir –, baseado na revisão de vida dos cristãos leigos, na família, na profissão, na sociedade.
Assim, a da ACP inspira-se em conceitos modernos de organização, define-se como movimento de massas e recorre às técnicas e aos meios de propaganda então usados na
sociedade civil.
Para dar uma ideia do espírito militante com que foi criada, a Acção Católica era tida como um exército de «reconquista cristã», nas linhas avançadas onde o clero já dificilmente penetrava. E consequentemente o seu objectivo de restauração do status da Igreja e de recristianização da sociedade portuguesa era apresentado como uma cruzada nacional. Qual insígnia desta missão, aí estava o hino da ACP, cuja música lembrava A Marselhesa, mas transposta para o modo menor, o que lhe conferia um toque de fado, e o tornava uma espécie de sinal contra-revolucionário. E cuja letra (julgo que da autoria do Padre Moreira das Neves, poeta por assim dizer oficial da Igreja e jornalista que viria a ser Chefe de Redacção de Novidades, o diário do Episcopado) estava repassada de um inequívoco espírito militarista, patriótico e triunfalista, então muito em moda. Eis esses versos, que se cantavam em todas as reuniões, festas e actos públicos da ACP:
Abram alas, terra em fora,
Por entre frémitos de luz.
Deus nos chama é nossa a hora,
Alerta pela Cruz!
Almas bravas de soldados,
Senhor, já surgem de além,
E há caminhos não andados
Que esperam por alguém.
Em nós, acendei em nós, ó Deus,
Flamas de um nobre ideal
Clarins, vibrem clarins nos
Por amor de Portugal.
Quem avança a conquistar troféus
Luta por bem da Grei
Lutai a cantar, de olhar em Deus,
Batalhões de Cristo-Rei!
Este mesmo espírito era expresso, ao mais alto nível, pelo Director Nacional da Acção Católica Portuguesa que a Conferência Episcopal nomeara, o Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, numa homilia logo após a recepção de uma extensa carta doutrinária de Pio XI aprovando e louvando a organização da ACP, homilia escrita naquele estilo de inconfundível recorte literário do Senhor Patriarca (como era chamado na intimidade), de que cito extensos passos:
«Que é afinal a Acção Católica?
Definiu-a o glorioso Pontífice nestes precisos termos: a participação do laicado católico no apostolado hierárquico. É uma missão sacerdotal agora confiada duma maneira oficial aos leigos, que S. Pedro tão justamente chama "a raça escolhida, um sacerdócio real".
Trata-se de levantar em toda a parte o exército de Deus. Unir, organizar e mobilizar todos os que acreditam que Deus falou por Cristo e Cristo fala pela Igreja aos homens – a fim de estender no mundo o reinado social de Nosso Senhor.
Esta união militante forma-se em volta dos báculos pastorais dos Chefes escolhidos por Cristo: os Bispos. Não há outros na Igreja cristã com pleno poder de dirigir e governar. União tão ampla como a Igreja: abraça o universo inteiro. Todos os interesses de Deus cabem nela.
União sob um comando nacional supremo. Pela cooperação de todos multiplica-se o trabalho de cada um.
Exército apostólico para quê? Para tomar a ofensiva da reconquista cristã.
Desde há séculos os católicos, na sua grande massa, se têm limitado à defensiva, perdendo terreno. A Renascença laicizou a cultura; a Revolução, o Estado e a sociedade. Hoje é a laicização total do indivíduo que de diversas formas se pretende e tenta.
A conclusão deste facto é a repaganização da vida humana, com todo o seu cortejo de misérias e abjecções. A Venus impura, que os próprios antigos disseram ser cruel e triste, disputa já o culto à Virgem Puríssima, que deu Cristo ao mundo, em Cristo a fonte da luz divina que o alumia, e da santidade que o enobrece, e da esperança que o alegra» .[7]
E, sobre o Boletim da Acção Católica Portuguesa, assim escrevia o mesmo Director Nacional:
«O Boletim será o clarim de comando. Transmitirá fielmente as ordens de serviço, estabelecerá o contacto entre todas as linhas de formação, manterá o moral nas forças de assalto, chamará a todos os soldados de Cristo ao bom combate.
O seu tema é: por Deus, por Cristo, pela Igreja! E sendo por Deus, Cristo e a Igreja, é por Portugal – visto que as nações como os homens só na Igreja, que é a voz de Cristo, e em Cristo, que é a voz de Deus, encontram a revelação do seu destino e missão» .[8]
Facilmente então se confundia o conceito de apostolado com o de cruzada, imbuído de analogias militares: a Acção Católica eram os «batalhões de Cristo-Rei», a restauração cristã da sociedade conduziria a uma civilização cristã, de que também falava, noutro sentido, Salazar. E até a associação de benemerência criada para recolha de fundos financeiros para a ACP se chamava, significativamente, Pia União dos Cruzados de Fátima.
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[1] Felizmente este trabalho foi iniciado, nos últimos anos, no Centro de Estudos Religiosos da Universidade Católica Portuguesa, e já se traduziu num trabalho de organização da documentação proveniente dos arquivos dos orgãos da ACP agora desaparecidos, num projecto coordenado pelo Dr. Paulo Fontes, que já publicou um ensaio de enquadramento, A Acção Católica Portuguesa (1933-1974) e a presença da Igreja na Sociedade, separata de Lusitânia Sacra, 2ª série (6), 1994, documento que citarei neste testemunho.
[2] Destes trabalhos consultei um extenso documento não publicado, intitulado Para a História dos Movimentos de Leigos em Portugal ‑ I. A Acção Católica Portuguesa, e o ensaio Revisão Histórica da Acção Católica Portuguesa, Revista Laikos, Ano IV, Outubro de 1980, nº 10.
[3] Estes dados foram recolhidos no referido trabalho não publicado do Cónego António dos Santos. pp. 3 a 6.
[4] Cf. Civardi, Mons. Luís, Manual de Acção Católica, Oficinas Gráficas da «Pax», Braga, 1935, p. 35.
[5] Idem ibidem, p. 36.
[6] Segundo o Artº 96º dos Estatutos: «O Assistente Eclesiástico é o Delegado da Hierarquia que, junto da Acção Católica, terá por missão: a) manter e defender a integridade da fé, da moral e da disciplina da Igreja; b) formar, assistir e animar os associados da mesma Acção católica em ordem ao seu apostolado».
[7] Citado pelo Padre António dos Santos [1983: pp. 22-23].
[8] Idem, idibem, p. 26.
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