Não sejamos ingénuos: um ex-primeiro ministro que é
detido para interrogatório à noite, à porta de um aeroporto, por agentes
destacados num automóvel à paisana, é um político previamente condenado ao
ostracismo. Há feridas na imagem que são irreparáveis para quem depende da
confiança dos eleitores. Por muito que José Sócrates não seja acusado de coisa
nenhuma, ainda que seja capaz de explicar em público quais são as suspeitas que
sobre ele impendem e como ele as esvaziou perante a Justiça, o que lhe
aconteceu nas últimas horas é um golpe fundo na sua credibilidade política e um
tiro mortal no seu polémico legado. Não, o problema não está na diligência
judicial em si mesma – nenhum cidadão inocente está livre de ser suspeito e de
ser detido e interrogado. O problema é que a detenção de José Sócrates é o
epílogo de uma longa série de relações
perigosas com casos que, muitas vezes, ficaram longe do
esclarecimento total. A necessidade de, um dia, ter de se explicar na Justiça
estava escrita nas estrelas.
Da sua casa no centro de Lisboa às assinaturas em obras para efeitos de
licenças municipais, do Freeport ao estranho caso da licenciatura ou às escutas
no processo Face Oculta, José Sócrates sempre teve à sua volta a
auréola do homem público a agir nas margens da legalidade. Até ao dia de ontem,
ele e os seus defensores sempre puderam argumentar, com razão, que em causa
estavam invenções que a Justiça se encarregara de negar, que era vítima da
perseguição da imprensa ou do ódio de muitos dos que tiveram de se confrontar
com a sua personalidade dura e teimosa. Ontem, esta construção desfez-se e deu
consistência a todas as dúvidas e suspeitas que se foram levantando nos últimos
anos. Mesmo que os casos anteriores tenham ficado encerrados pelo arquivamento
preliminar ou pelo despacho burocrático de altas figuras como a do
ex-presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que mandou destruir as escutas do
caso Face Oculta, Sócrates e a lei têm finalmente uma oportunidade de
pôr tudo em pratos limpos.»
É discutível que tenha havido necessidade de deter José Sócrates no aeroporto
(em tese, João Soares tem razão ao dizer
que se tratou de uma “tentativa de humilhação”), é censurável que
essa detenção tenha sido previamente comunicada à imprensa, mas em processos
desta sensibilidade há sempre erros e melhores opções que acabaram por não ser
tomadas. De resto, nós não sabemos que avaliações os magistrados fizeram à
consistência e gravidade dos indícios de corrupção ou de branqueamento de
capitais. Desconhecemos se recearam o perigo de fuga. E nem nos passa pela
cabeça até que ponto consideraram a possibilidade de contactos entre os
arguidos como uma fonte de contaminação do processo. Conhecendo o que se
conhece, o que está em curso é apenas uma diligência normal, um interrogatório
que, se agrava as suspeitas que sempre pairaram na imprensa ou em muitos
círculos políticos e judiciais, está longe de poder servir para se acusar ou
ainda menos condenar José Sócrates do que quer que seja.
Há ainda assim quem queira ver nesta diligência judicial uma cabala política
montada pelo sistema judicial. A personalidade de Sócrates reúne todas as
condições para que a irracionalidade prospere neste debate. O ex-primeiro
ministro é uma daquelas personalidades vincadas que uns veneram e outros tantos
detestam com a mesma veemência. Não há meio-termo. Os seus fervorosos apoiantes
tenderão ver nesta história apenas mais um golpe desferido num actor político
que foi golpeado desde que surgiu na corrida pelo PS - Edite Estrela insinuava
ontem que em causa estava apenas uma tentativa de fazer esquecer o escândalo
dos vistos gold. Os que o odeiam verão na sua detenção para
interrogatório a confirmação do seu juízo e, aconteça o que acontecer, José
Sócrates estará para eles condenado ad eternum.
Nenhuma das hostes tem razão, embora nesta fase do processo o maior perigo
venha daqueles que, sem conhecerem os factos em profundidade, tendem a condenar
José Sócrates apenas com a escassa luz da sua emoção. Mas vale a pena notar que
muitas das palavras críticas ou suspeitosas que ontem se dirigiram aos
magistrados representam uma contradição com o que o clamor nacional que nos
últimos anos se fez ouvir contra uma Justiça incapaz de julgar os poderosos.
Não é por aí que se vai a lado algum. A maioria dos portugueses que assiste
perplexa ao soçobrar moral do regime deve certamente preferir uma Justiça que
ousa e revela segurança sobre si mesmo do que uma Justiça complexada,
burocrática e temerosa dos poderes instituídos. Como então se suspeitou, há um
antes e um depois da sentença do caso Face Oculta.
Enroladas nas teias que teceu sobre si próprio, ou que deixou tecer nas suas
relações profissionais e de patrocínio político, as suspeitas sobre Sócrates
marcam o fim de uma era. Os anos 10 do século XXI acabam com um desastre
financeiro e com a hecatombe política do seu mais emblemático governante. Os
estilhaços do que está a acontecer vão abalar duramente um PS apostado em
conciliar o que se veio a tornar inconciliável: um passado, um Governo e um nome
contaminados pela suspeição e um presente e um futuro que têm de ser
diferentes. A parte do PS que, por generosidade sentimento de justiça ou
inocência, acreditava na recuperação de Sócrates como um activo político
percebeu agora que a sua memória não está apenas associada ao ajustamento
financeiro; está igualmente a ser alvo de um ajustamento ético pela via
judicial.
Dizer que José Sócrates está para todo o sempre perdido para a política é
ainda assim um absurdo que transporta implícita a sua culpa e a sua condenação.
Não é assim. Ele não é por ora acusado de nada e pode sair do interrogatório
completamente ilibado. Mas é difícil acreditar que nos próximos anos ele possa
ser reabilitado para o que quer que seja. Uma detenção num aeroporto feita à
noite e a sua passagem pela prisão por horas que seja criaram um poderoso
anátema que vai levar anos a superar. O simples facto de haver um juiz capaz de
decretar a detenção de um ex-primeiro ministro deixará sempre no ar a
existência de fortes indícios de que algo correu mal na sua relação com a lei.
Sócrates, que outrora organizava conferências de imprensa para se defender dos
ataques da imprensa, é hoje um político sem futuro próximo, um activo tóxico
que retira credibilidade a uma parte significativa do actual PS e dá razão
póstuma a António José Seguro. Depois do escândalo com os visto gold e
da perda de um dos seus melhores ministros, Pedro Passos Coelho não podia
esperar melhor.
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