Este blogue é uma extensão de Entre as brumas da memória.

domingo, 23 de novembro de 2014

José Sócrates, uma luzinha que se apaga, Manuel Carvalho (Público 23/11/2014)



Não sejamos ingénuos: um ex-primeiro ministro que é detido para interrogatório à noite, à porta de um aeroporto, por agentes destacados num automóvel à paisana, é um político previamente condenado ao ostracismo. Há feridas na imagem que são irreparáveis para quem depende da confiança dos eleitores. Por muito que José Sócrates não seja acusado de coisa nenhuma, ainda que seja capaz de explicar em público quais são as suspeitas que sobre ele impendem e como ele as esvaziou perante a Justiça, o que lhe aconteceu nas últimas horas é um golpe fundo na sua credibilidade política e um tiro mortal no seu polémico legado. Não, o problema não está na diligência judicial em si mesma – nenhum cidadão inocente está livre de ser suspeito e de ser detido e interrogado. O problema é que a detenção de José Sócrates é o epílogo de uma longa série de relações perigosas com casos que, muitas vezes, ficaram longe do esclarecimento total. A necessidade de, um dia, ter de se explicar na Justiça estava escrita nas estrelas.

Da sua casa no centro de Lisboa às assinaturas em obras para efeitos de licenças municipais, do Freeport ao estranho caso da licenciatura ou às escutas no processo Face Oculta, José Sócrates sempre teve à sua volta a auréola do homem público a agir nas margens da legalidade. Até ao dia de ontem, ele e os seus defensores sempre puderam argumentar, com razão, que em causa estavam invenções que a Justiça se encarregara de negar, que era vítima da perseguição da imprensa ou do ódio de muitos dos que tiveram de se confrontar com a sua personalidade dura e teimosa. Ontem, esta construção desfez-se e deu consistência a todas as dúvidas e suspeitas que se foram levantando nos últimos anos. Mesmo que os casos anteriores tenham ficado encerrados pelo arquivamento preliminar ou pelo despacho burocrático de altas figuras como a do ex-presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que mandou destruir as escutas do caso Face Oculta, Sócrates e a lei têm finalmente uma oportunidade de pôr tudo em pratos limpos.»

É discutível que tenha havido necessidade de deter José Sócrates no aeroporto (em tese, João Soares tem razão ao dizer que se tratou de uma “tentativa de humilhação”), é censurável que essa detenção tenha sido previamente comunicada à imprensa, mas em processos desta sensibilidade há sempre erros e melhores opções que acabaram por não ser tomadas. De resto, nós não sabemos que avaliações os magistrados fizeram à consistência e gravidade dos indícios de corrupção ou de branqueamento de capitais. Desconhecemos se recearam o perigo de fuga. E nem nos passa pela cabeça até que ponto consideraram a possibilidade de contactos entre os arguidos como uma fonte de contaminação do processo. Conhecendo o que se conhece, o que está em curso é apenas uma diligência normal, um interrogatório que, se agrava as suspeitas que sempre pairaram na imprensa ou em muitos círculos políticos e judiciais, está longe de poder servir para se acusar ou ainda menos condenar José Sócrates do que quer que seja.

Há ainda assim quem queira ver nesta diligência judicial uma cabala política montada pelo sistema judicial. A personalidade de Sócrates reúne todas as condições para que a irracionalidade prospere neste debate. O ex-primeiro ministro é uma daquelas personalidades vincadas que uns veneram e outros tantos detestam com a mesma veemência. Não há meio-termo. Os seus fervorosos apoiantes tenderão ver nesta história apenas mais um golpe desferido num actor político que foi golpeado desde que surgiu na corrida pelo PS - Edite Estrela insinuava ontem que em causa estava apenas uma tentativa de fazer esquecer o escândalo dos vistos gold. Os que o odeiam verão na sua detenção para interrogatório a confirmação do seu juízo e, aconteça o que acontecer, José Sócrates estará para eles condenado ad eternum.

Nenhuma das hostes tem razão, embora nesta fase do processo o maior perigo venha daqueles que, sem conhecerem os factos em profundidade, tendem a condenar José Sócrates apenas com a escassa luz da sua emoção. Mas vale a pena notar que muitas das palavras críticas ou suspeitosas que ontem se dirigiram aos magistrados representam uma contradição com o que o clamor nacional que nos últimos anos se fez ouvir contra uma Justiça incapaz de julgar os poderosos. Não é por aí que se vai a lado algum. A maioria dos portugueses que assiste perplexa ao soçobrar moral do regime deve certamente preferir uma Justiça que ousa e revela segurança sobre si mesmo do que uma Justiça complexada, burocrática e temerosa dos poderes instituídos. Como então se suspeitou, há um antes e um depois da sentença do caso Face Oculta.

Enroladas nas teias que teceu sobre si próprio, ou que deixou tecer nas suas relações profissionais e de patrocínio político, as suspeitas sobre Sócrates marcam o fim de uma era. Os anos 10 do século XXI acabam com um desastre financeiro e com a hecatombe política do seu mais emblemático governante. Os estilhaços do que está a acontecer vão abalar duramente um PS apostado em conciliar o que se veio a tornar inconciliável: um passado, um Governo e um nome contaminados pela suspeição e um presente e um futuro que têm de ser diferentes. A parte do PS que, por generosidade sentimento de justiça ou inocência, acreditava na recuperação de Sócrates como um activo político percebeu agora que a sua memória não está apenas associada ao ajustamento financeiro; está igualmente a ser alvo de um ajustamento ético pela via judicial.

Dizer que José Sócrates está para todo o sempre perdido para a política é ainda assim um absurdo que transporta implícita a sua culpa e a sua condenação. Não é assim. Ele não é por ora acusado de nada e pode sair do interrogatório completamente ilibado. Mas é difícil acreditar que nos próximos anos ele possa ser reabilitado para o que quer que seja. Uma detenção num aeroporto feita à noite e a sua passagem pela prisão por horas que seja criaram um poderoso anátema que vai levar anos a superar. O simples facto de haver um juiz capaz de decretar a detenção de um ex-primeiro ministro deixará sempre no ar a existência de fortes indícios de que algo correu mal na sua relação com a lei. Sócrates, que outrora organizava conferências de imprensa para se defender dos ataques da imprensa, é hoje um político sem futuro próximo, um activo tóxico que retira credibilidade a uma parte significativa do actual PS e dá razão póstuma a António José Seguro. Depois do escândalo com os visto gold e da perda de um dos seus melhores ministros, Pedro Passos Coelho não podia esperar melhor.
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