Documento inédito: Fonte: ANTT – PIDE/DGS, Processo 5191 CI (1), Caixa 1305, pasta 20.
PRESIDÊNCIA DO CONSELHO
SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Secção do Contencioso Administrativo
Recurso nº. 7 753, tendo apensado o recurso nº 7 711, em que é recorrente PRAGMA – SOCIEDADE COOPERATIVA DE DIFUSÃO CULTURAL, S.C.R.L. e recorrido MINISTRO DO INTERIOR, e de que foi Relator o Exmº Conselheiro Dr. Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos.
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
PRAGMA – Sociedade Cooperativa de Difusão Cultural, S.C.R.L., com sede em Lisboa, recorre contenciosamente, perante este Supremo Tribunal, do despacho do Sr. Ministro do Interior, de 29 de Março de 1968, que decretou a dissolução da recorrente.
Funda o recurso em usurpação do poder, violação da lei e inconstitucionalidade material das normas aplicadas.
Apresenta as seguintes conclusões:
1º - O despacho proferido pelo Senhor Ministro do Interior, dissolvendo a Pragma, enferma do vício de usurpação do poder.
2º - Na verdade, o Senhor Ministro recorrido não tinha competência para dissolver a recorrente, em virtude de se tratar de uma sociedade cooperativa de responsabilidade limitada, constituída e funcionando nos termos do Código Comercial Português.
3º - Ora, em conformidade no disposto no artº 147º do referido Código, cabe aos Tribunais, por intervenção do Ministério Público, a declaração de inexistência das sociedades que se tenham constituído ao abrigo do mesmo Código.
4º - O Governo não pode, por conseguinte, fazer cessar, por acto administrativo, o exercício de qualquer sociedade regulada no Código Comercial.
5º - E não podem restar dúvidas de que a recorrente era uma verdadeira sociedade cooperativa, pois:
• Tinha se legalmente constituído ao abrigo do artº 207º do Código Comercial Português;
• prosseguia um escopo económico e visava predominantemente fins de utilidade particular; e
• no exercício do seu objecto social praticava actos de comércio: venda entre os seus sócios de diversos artigos; montagem de serviço de explicação a sócios; cursos de férias para filhos de sócios, etc.
6º - Assim, as cooperativas constituídas nos termos do Código Comercial, embora não sejam puras sociedades comerciais, também não podem ser consideradas como associações, pelo que obtiveram o reconhecimento normativo e não se encontram pois sob a alçada do Decreto Lei nº 39 660.
7º - Por outro lado, jamais a Pragma se desviou dos seus fins ou exerceu «actividades lesivas do Estado e da sociedade, bem como dos princípios em que assenta a ordem moral, social e política da Nação».
8º - Com efeito, os documentos encontrados na sede da recorrente tinham sido recolhidos nos meios da emigração portuguesa em França e eram de tendências muito diversas, nomeadamente de organizações católicas e de outras de inspiração marxista, e tinham a única e exclusiva finalidade de informação e estudo, no âmbito de um colóquio acerca do problema da emigração, que se vinha realizando em sessões diversas, destinadas a sócios, na sede da recorrente.
9º - No que diz respeito aos discos, foram os mesmos, apenas 4, encontrados na sede da recorrente, embrulhados num pacote dirigido ao seu legítimo proprietário.
10º - Estavam lá, no entanto, por mero acaso ou acidente, como pura encomenda, sem qualquer responsabilidade da Direcção e sem a mínima relação com os sócios ou com a actividade da recorrente: não estavam expostos, não foram nem se destinavam a ser vendidos ou sequer utilizados.
11º - Ora, o que é decisivo é que do processo instrutor não consta a mínima prova sobre a defesa ou propaganda das ideias contidas quer nos documentos, quer nos discos.
12º - Por isso, se deve concluir não existir prova da prática por parte da recorrente de actos «lesivos do Estado e da sociedade, bem como dos princípios em que assenta a ordem moral, social e política da Nação».
13º - É assim manifesto que a actividade da Pragma não lesava os interesses do Estado e da sociedade pelo menos nos termos em que constitucionalmente estes podem funcionar como limites ao exercício da liberdade de associação.
14º - Nestas condições, temos de concluir que o despacho recorrido assenta em errados pressupostos de facto e de direito: o que constitui violação da lei.
15º - Mas o despacho impugnado fez ainda incorrecta aplicação das disposições legais do Decreto Lei nº 39 660.
16º - Efectivamente, a única disposição legal desse Decreto Lei com base na qual poderá ser lícito ao Governo promover a dissolução de uma associação é a que consta do seu artº 4º.
17º - O preceito constante do artº. 6º do mesmo diploma legal, por sua vez, tem por finalidade exclusiva equiparar as associações às sociedades secretas para efeitos de punições dos seus membros.
18º - Mas quando este último artigo manda aplicar as disposições legais da Lei nº 1 901 e do Decreto Lei nº 37 447 refere-se ao exercício do direito de punição (no que aliás é flagrantemente inconstitucional) mas não ao exercício do direito de dissolução das associações.
19º - Acresce, ainda, que a Pragma não foi acusada no despacho da prática de actividades subversivas, as quais necessariamente recairiam sob a alçada do direito penal.
20º - Por isso, não lhe são aplicáveis as disposições da Lei nº 1091, nem o artº 26º do Decreto-lei nº 37 447.
21º - Por conseguinte, a dissolução da sociedade recorrente com base nas disposições legais da alínea a) do artº 2º da Lei nº 1 901 de 21 de Maio de 1935 e do artº 26º do Decreto-lei nº 37 447 de 13 de Junho de 1949, aplicáveis por força do artº 6º do Decreto-lei nº 39660 de 20 de Maio de 1964, constitui flagrante violação da lei, designadamente das referidas disposições legais e, ainda, do próprio artº 4º. Deste último Decreto Lei.
Conclui por pedir o provimento do recurso, anulando-se o despacho recorrido e restituindo-se o recorrente ao gozo de todos os seus direitos de sociedade cooperativa legalmente constituída e funcionando em conformidade com as leis do País.
O Sr. Ministro recorrido respondeu, a fls. 47 e segs., a defender a legalidade do acto impugnado que, em seu entender, não enferma de qualquer dos vícios invocados pela recorrente.
Em alegações finais a recorrente desenvolveu os fundamentos do recurso que já ficaram mencionados.
O ilustre representante do Ministério Público é de parecer que ele não merece provimento.
O recurso, que é o próprio, foi interposto legitimamente e em tempo.
Não se verifica a existência de questões que obstem ao conhecimento do seu objectivo.
Pelo que – tudo visto:
Vem provado nos autos que por escritura pública lavrada nas notas do 1º. Cartório Notarial de Lisboa, em 11 de Abril de 1964, de fls. 84 a 92 vº do livro nº 2 497 D a cargo do notário Luis Martins de Campos Ferreira, foi constituída a “Pragma – Sociedade Cooperativa de Difusão Cultural e Acção Comunitária, S.C.R.L.” (Fls. 87 e seguintes).
Em 5 de Junho de 1964 foi publicado no Diário do Governo, IIIª. Série, nº 133. o respectivo extracto do pacto social, com indicação do capital social, montante e natureza das acções e objecto da sociedade (fls. 17).
A constituição definitiva da sociedade encontra se registada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, sob o nº 96290, a fls. 44 vº. do livro 182-EC, e a matrícula da mesma Sociedade aberta sob o nº 35 105, a fls. 160 do Livro c 84, da referida Conservatória (Fls. 18).
De acordo com o artigo 3º do pacto é objecto da sociedade: a) – Facultar aos seus sócios a maior defesa económica nos artigos que possa adquirir ou produzir; b) – Promover o aperfeiçoamento moral, cultural e técnico dos sócios e suas famílias, nomeadamente através de: 1. Edição e distribuição de livros e publicações; 2. Instalação de bibliotecas, escolas e gabinetes técnicos; 3. Organização de cursos, reuniões e conferências; 4. Fornecimento de livros e outro material indispensável às actividades acima referidas; 5. Elaboração de estudos e projectos económico-socais; 6. Obtenção para os seus sócios de estágios e bolsas de estudo; c) Instalar casas de férias para sócios e famílias.
Em 29 de Março de 1968 o Sr. Ministro do Interior proferiu, no processo organizado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado, que serve de instrutor ao presente recurso, o seguinte despacho: “A Pragma não submeteu os seus estatutos a aprovação superior como legalmente se impunha, dada a natureza dos seus fins, tendo se constituído como simples sociedade comercial.
Além disso, desviando se dos objectivos para que teria sido criada, a Pragma vem exercendo actividades lesivas do Estado e da sociedade, bem como dos princípios em que assenta a ordem moral, social e política da Nação, achando se, por isso, incursa no disposto no artº 6º do Decreto-lei nº 39 660 de 20 de Maio de 1964.
Assim, nos termos do disposto na alínea a) do artº 2º da Lei nº. 1901, de 21 de Maio de 1935 e no artº 26º do Decreto-lei nº 37 447 de 13 de Junho de 1949, aplicáveis por força do artº 6º do Decreto-lei nº 39660 atrás citado, dissolvo a Pragma – Cooperativa de Difusão Cultural e Acção Comunitária, S.C.R.L., com sede na Rua da Glória, nº 4 – 2º, em Lisboa. Devolva-se o processo à Polícia Internacional para os devidos efeitos”.
É este o acto contenciosamente impugnado no presente recurso directo de anulação.
O que está em causa é, portanto, e unicamente, o acto de dissolução da recorrente. Isto se torna, desde já, saliente, porque o Governo tomou, em relação à recorrente e às pessoas que integram os seus órgãos directivos, outras medidas que não constando do acto impugnado, não constituem, por isso, objecto do presente recurso contencioso.
A primeira questão a decidir é a da alegada incompetência do Sr. Ministro do Interior ao decretar a dissolução da recorrente, incompetência que, no caso, configuraria o vício de usurpação do poder atribuído ao acto impugnado.
Acaba de se transcrever o despacho recorrido.
Em face do que dele consta, a questão posta desdobra se na averiguação destes dois pontos concretos: se a recorrente é uma sociedade, revestida de personalidade colectiva; se a lei confere ao Governo (e designadamente ao Sr. Ministro do Interior) o poder legal de dissolver as sociedades a que o nosso ordenamento jurídico atribua personalidade.
Como se sabe tem se entendido quase unanimemente entre nós que as sociedades comerciais, assim como as sociedades civis que se constituam sob forma comercial, são pessoas colectivas, desde que satisfaçam aos requisitos exigidos pelo artº 104º do Código Comercial. É, na verdade, o que resulta do disposto no artº 108º do referido diploma legal.
Quanto à outorga da personalidade, o princípio que vigora em relação às associações é o do reconhecimento normativo. Por isso, enquanto que as associações só adquirem personalidade colectiva mediante acto constitutivo de direitos, as sociedades (pelo menos as que revistam forma comercial) adquirem na pelo acto de registo, por acto meramente declarativo.
No caso dos autos a recorrente é uma sociedade constituída de harmonia com o disposto no artº 207º do Código Comercial, que adoptou a forma de sociedade anónima, tendo cumprido todas as prescrições legais exigíveis a esta espécie de sociedades e efectuado o seu registo. É, assim, uma sociedade cooperativa de responsabilidade limitada, a quem a lei reconhece e atribui personalidade.
Podem estas sociedades ser dissolvidas por acto do Governo?
Entendeu que sim o despacho recorrido, invocando, para tal, o disposto no artº 6º do Decº-Lei nº. 39 660.
Vejamos se será assim.
Um dos direitos individuais reconhecidos pela Constituição Política Portuguesa é o da liberdade de reunião e associação, direito que, segundo o texto constitucional, tem de ser exercido sem ofensa dos direitos de terceiro e de modo a não lesar interesse da Sociedade ou infringir os princípios da moral (artº 6º, nº 14 e par. 1º). O exercício dos direitos individuais depende da regulamentação feita em lei ordinária (Cit. artº, & 2º).
Um dos diplomas legais que regulamentam, entre nós, o direito de reunião e de associação, é precisamente o Decreto-Lei nº 39 660, de 20 de Maio de 1954.
Prescreve se no seu artº 6º, «As associações que funcionem em contravenção do disposto neste diploma são equiparadas às associações secretas, sendo aplicáveis àqueles que as dirigem, administrarem ou por qualquer forma participarem na sua actividade, ainda que como simples associados, as sanções previstas na Lei nº 1901, de 21 de Maio de 1935, sem prejuízo do disposto no Decreto-Lei nº 37 447, de 31 de Junho de 1949, quanto a associações ou agrupamentos que exerçam actividades subversivas».
Foi com invocação deste preceito e por aplicação directa da alínea a) do artº 2º da lei nº 1901 e do artº 26º do Decº-Lei nº 37 447, que o acto impugnado dissolveu a recorrente.
É de ponderar, porém, que nenhuma destas normas se destina a regular a constituição, a vida e a extinção das sociedades comerciais. Essas matérias têm assento próprio nos artºs 104º e seguintes do Código Comercial, que expressa e exclusivamente as disciplinaram.
Objecta o Sr. Ministro recorrido que a «Pragma», embora se haja constituído sob a forma de sociedade cooperativa anónima de responsabilidade limitada, não era uma sociedade comercial, por não ter por objecto a prossecução de um fim lucrativo, nem a prática de actos de comércio, nem era uma sociedade civil porque os sócios se não associaram pondo em comum os seus bens ou parte deles, a sua indústria simplesmente, ou os seus bens e indústria conjuntamente com o intuito de repartirem entre si os proveitos ou perdas, que pudessem resultar dessa comunhão, como dizia o artº 1 240º do Código Civil de 1867, vigente à data da sua constituição. Não sendo sociedade comercial, nem sociedade civil sob forma comercial, a recorrente era pessoa colectiva de fim interessado não lucrativo, ou seja, uma associação, não estando, por isso, sujeita ao reconhecimento normativo, mas sim ao reconhecimento por concessão, podendo ser dissolvida por decisão do Ministro do Interior, nos termos e casos em que o podem ser as outras associações.
Não pode, porém, aderir se a este tipo de raciocínio.
É que ele confunde o problema da legalidade da constituição e funcionamento da sociedade, com o da competência do órgão incumbido por lei para conhecer daquela legalidade, sendo este último aspecto o único que interessa à apreciação do vício de usurpação de poder que se atribui ao acto impugnado.
Quer dizer, antes de saber se o substrato do ente colectivo que se constitui corresponde ou não ao tipo legal previsto, é necessário apurar a entidade competente para decidir dessa questão. Ora a argumentação expandida na douta resposta da fls. 47, desenvolve se em sentido precisamente inverso. Aliás, é também imperativo lógico que não pode dissolver se aquilo que não chegou a constituir se. Por isso, e muito adequadamente, o despacho recorrido, para decretar a dissolução da recorrente, começou por afirmar que ela se constituiu «como simples sociedade comercial».
Sendo o âmbito do recurso determinado pelo conteúdo dos actos recorridos não pode a autoridade recorrida, na resposta ao recurso, justificar a prática do acto por razões diferentes daquelas que constam da sua motivação expressa (Marcello Caetano, Manual, 7ª ed. pág. 764).
Esclarecido este aspecto do recurso, o quesito a propor é tão somente este: quem pode dissolver uma sociedade comercial que embora revestindo a forma dessas pessoas colectivas se tenha constituído por lei, ou que se tenha desviado dos objectivos para que foi criada?
E a resposta parece conter se claramente no disposto no artº 147º do Código Comercial: o Governo pode promover (...), por intervenção do Ministério Público, as acções que forem necessárias para se haverem como não existentes as sociedades que funcionem ou se estabeleçam em contravenção das disposições deste Código. Que assim é, vê se da consulta à fonte deste preceito, que foi o artº 58º e seu par. único da lei de 22 de Junho de 1867, segundo o qual o Governo não podia fazer cessar por acto administrativo o exercício de qualquer sociedade anónima legalmente constituída, mas podia promover nos tribunais comuns competentes, por intervenção do Ministério Público, a dissolução das sociedades que funcionassem ou se estabelecessem em contravenção das disposições daquela lei.
E compreende se perfeitamente o sentido da norma, se tivermos em conta que seria inconciliável o funcionamento do princípio do reconhecimento normativo da personalidade das sociedades comerciais, com a atribuição ao Governo da competência para, por simples acto administrativo, as retirar da ordem jurídica.
No caso sub judice, portanto, só os tribunais comuns podiam conhecer, através da propositura da respectiva acção, dos vícios imputados quer à constituição, quer ao funcionamento da sociedade recorrente, em ordem a declarar a sua inexistência jurídica
Substituindo se aos tribunais judiciais para fazer aquela declaração, do acto impugnado mostra se eivado do vício de incompetência, na sua forma específica de usurpação do poder, o que determina a sua anulação contenciosa.
Esta conclusão, como é óbvio, não prejudica, só por si, a licitude de providências ou medidas que o Governo esteja autorizado, por lei, a praticar, mesmo em relação a pessoas colectivas deste tipo, na defesa da ordem pública e na repressão de actividades subversivas.
Por todo o exposto – e considerando prejudicado o conhecimento dos restantes fundamentos do recurso – concedem provimento a este, e, em consequência, anulam o despacho recorrido.
Sem custos.
Lisboa, 11 de Julho de 1969
Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos (Relator) – António José Simões de Oliveira – José Alfredo Soares Manso Preto
PRESIDÊNCIA DO CONSELHO
SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
Secção do Contencioso Administrativo
Recurso nº. 7 753, tendo apensado o recurso nº 7 711, em que é recorrente PRAGMA – SOCIEDADE COOPERATIVA DE DIFUSÃO CULTURAL, S.C.R.L. e recorrido MINISTRO DO INTERIOR, e de que foi Relator o Exmº Conselheiro Dr. Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos.
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo:
PRAGMA – Sociedade Cooperativa de Difusão Cultural, S.C.R.L., com sede em Lisboa, recorre contenciosamente, perante este Supremo Tribunal, do despacho do Sr. Ministro do Interior, de 29 de Março de 1968, que decretou a dissolução da recorrente.
Funda o recurso em usurpação do poder, violação da lei e inconstitucionalidade material das normas aplicadas.
Apresenta as seguintes conclusões:
1º - O despacho proferido pelo Senhor Ministro do Interior, dissolvendo a Pragma, enferma do vício de usurpação do poder.
2º - Na verdade, o Senhor Ministro recorrido não tinha competência para dissolver a recorrente, em virtude de se tratar de uma sociedade cooperativa de responsabilidade limitada, constituída e funcionando nos termos do Código Comercial Português.
3º - Ora, em conformidade no disposto no artº 147º do referido Código, cabe aos Tribunais, por intervenção do Ministério Público, a declaração de inexistência das sociedades que se tenham constituído ao abrigo do mesmo Código.
4º - O Governo não pode, por conseguinte, fazer cessar, por acto administrativo, o exercício de qualquer sociedade regulada no Código Comercial.
5º - E não podem restar dúvidas de que a recorrente era uma verdadeira sociedade cooperativa, pois:
• Tinha se legalmente constituído ao abrigo do artº 207º do Código Comercial Português;
• prosseguia um escopo económico e visava predominantemente fins de utilidade particular; e
• no exercício do seu objecto social praticava actos de comércio: venda entre os seus sócios de diversos artigos; montagem de serviço de explicação a sócios; cursos de férias para filhos de sócios, etc.
6º - Assim, as cooperativas constituídas nos termos do Código Comercial, embora não sejam puras sociedades comerciais, também não podem ser consideradas como associações, pelo que obtiveram o reconhecimento normativo e não se encontram pois sob a alçada do Decreto Lei nº 39 660.
7º - Por outro lado, jamais a Pragma se desviou dos seus fins ou exerceu «actividades lesivas do Estado e da sociedade, bem como dos princípios em que assenta a ordem moral, social e política da Nação».
8º - Com efeito, os documentos encontrados na sede da recorrente tinham sido recolhidos nos meios da emigração portuguesa em França e eram de tendências muito diversas, nomeadamente de organizações católicas e de outras de inspiração marxista, e tinham a única e exclusiva finalidade de informação e estudo, no âmbito de um colóquio acerca do problema da emigração, que se vinha realizando em sessões diversas, destinadas a sócios, na sede da recorrente.
9º - No que diz respeito aos discos, foram os mesmos, apenas 4, encontrados na sede da recorrente, embrulhados num pacote dirigido ao seu legítimo proprietário.
10º - Estavam lá, no entanto, por mero acaso ou acidente, como pura encomenda, sem qualquer responsabilidade da Direcção e sem a mínima relação com os sócios ou com a actividade da recorrente: não estavam expostos, não foram nem se destinavam a ser vendidos ou sequer utilizados.
11º - Ora, o que é decisivo é que do processo instrutor não consta a mínima prova sobre a defesa ou propaganda das ideias contidas quer nos documentos, quer nos discos.
12º - Por isso, se deve concluir não existir prova da prática por parte da recorrente de actos «lesivos do Estado e da sociedade, bem como dos princípios em que assenta a ordem moral, social e política da Nação».
13º - É assim manifesto que a actividade da Pragma não lesava os interesses do Estado e da sociedade pelo menos nos termos em que constitucionalmente estes podem funcionar como limites ao exercício da liberdade de associação.
14º - Nestas condições, temos de concluir que o despacho recorrido assenta em errados pressupostos de facto e de direito: o que constitui violação da lei.
15º - Mas o despacho impugnado fez ainda incorrecta aplicação das disposições legais do Decreto Lei nº 39 660.
16º - Efectivamente, a única disposição legal desse Decreto Lei com base na qual poderá ser lícito ao Governo promover a dissolução de uma associação é a que consta do seu artº 4º.
17º - O preceito constante do artº. 6º do mesmo diploma legal, por sua vez, tem por finalidade exclusiva equiparar as associações às sociedades secretas para efeitos de punições dos seus membros.
18º - Mas quando este último artigo manda aplicar as disposições legais da Lei nº 1 901 e do Decreto Lei nº 37 447 refere-se ao exercício do direito de punição (no que aliás é flagrantemente inconstitucional) mas não ao exercício do direito de dissolução das associações.
19º - Acresce, ainda, que a Pragma não foi acusada no despacho da prática de actividades subversivas, as quais necessariamente recairiam sob a alçada do direito penal.
20º - Por isso, não lhe são aplicáveis as disposições da Lei nº 1091, nem o artº 26º do Decreto-lei nº 37 447.
21º - Por conseguinte, a dissolução da sociedade recorrente com base nas disposições legais da alínea a) do artº 2º da Lei nº 1 901 de 21 de Maio de 1935 e do artº 26º do Decreto-lei nº 37 447 de 13 de Junho de 1949, aplicáveis por força do artº 6º do Decreto-lei nº 39660 de 20 de Maio de 1964, constitui flagrante violação da lei, designadamente das referidas disposições legais e, ainda, do próprio artº 4º. Deste último Decreto Lei.
Conclui por pedir o provimento do recurso, anulando-se o despacho recorrido e restituindo-se o recorrente ao gozo de todos os seus direitos de sociedade cooperativa legalmente constituída e funcionando em conformidade com as leis do País.
O Sr. Ministro recorrido respondeu, a fls. 47 e segs., a defender a legalidade do acto impugnado que, em seu entender, não enferma de qualquer dos vícios invocados pela recorrente.
Em alegações finais a recorrente desenvolveu os fundamentos do recurso que já ficaram mencionados.
O ilustre representante do Ministério Público é de parecer que ele não merece provimento.
O recurso, que é o próprio, foi interposto legitimamente e em tempo.
Não se verifica a existência de questões que obstem ao conhecimento do seu objectivo.
Pelo que – tudo visto:
Vem provado nos autos que por escritura pública lavrada nas notas do 1º. Cartório Notarial de Lisboa, em 11 de Abril de 1964, de fls. 84 a 92 vº do livro nº 2 497 D a cargo do notário Luis Martins de Campos Ferreira, foi constituída a “Pragma – Sociedade Cooperativa de Difusão Cultural e Acção Comunitária, S.C.R.L.” (Fls. 87 e seguintes).
Em 5 de Junho de 1964 foi publicado no Diário do Governo, IIIª. Série, nº 133. o respectivo extracto do pacto social, com indicação do capital social, montante e natureza das acções e objecto da sociedade (fls. 17).
A constituição definitiva da sociedade encontra se registada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, sob o nº 96290, a fls. 44 vº. do livro 182-EC, e a matrícula da mesma Sociedade aberta sob o nº 35 105, a fls. 160 do Livro c 84, da referida Conservatória (Fls. 18).
De acordo com o artigo 3º do pacto é objecto da sociedade: a) – Facultar aos seus sócios a maior defesa económica nos artigos que possa adquirir ou produzir; b) – Promover o aperfeiçoamento moral, cultural e técnico dos sócios e suas famílias, nomeadamente através de: 1. Edição e distribuição de livros e publicações; 2. Instalação de bibliotecas, escolas e gabinetes técnicos; 3. Organização de cursos, reuniões e conferências; 4. Fornecimento de livros e outro material indispensável às actividades acima referidas; 5. Elaboração de estudos e projectos económico-socais; 6. Obtenção para os seus sócios de estágios e bolsas de estudo; c) Instalar casas de férias para sócios e famílias.
Em 29 de Março de 1968 o Sr. Ministro do Interior proferiu, no processo organizado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado, que serve de instrutor ao presente recurso, o seguinte despacho: “A Pragma não submeteu os seus estatutos a aprovação superior como legalmente se impunha, dada a natureza dos seus fins, tendo se constituído como simples sociedade comercial.
Além disso, desviando se dos objectivos para que teria sido criada, a Pragma vem exercendo actividades lesivas do Estado e da sociedade, bem como dos princípios em que assenta a ordem moral, social e política da Nação, achando se, por isso, incursa no disposto no artº 6º do Decreto-lei nº 39 660 de 20 de Maio de 1964.
Assim, nos termos do disposto na alínea a) do artº 2º da Lei nº. 1901, de 21 de Maio de 1935 e no artº 26º do Decreto-lei nº 37 447 de 13 de Junho de 1949, aplicáveis por força do artº 6º do Decreto-lei nº 39660 atrás citado, dissolvo a Pragma – Cooperativa de Difusão Cultural e Acção Comunitária, S.C.R.L., com sede na Rua da Glória, nº 4 – 2º, em Lisboa. Devolva-se o processo à Polícia Internacional para os devidos efeitos”.
É este o acto contenciosamente impugnado no presente recurso directo de anulação.
O que está em causa é, portanto, e unicamente, o acto de dissolução da recorrente. Isto se torna, desde já, saliente, porque o Governo tomou, em relação à recorrente e às pessoas que integram os seus órgãos directivos, outras medidas que não constando do acto impugnado, não constituem, por isso, objecto do presente recurso contencioso.
A primeira questão a decidir é a da alegada incompetência do Sr. Ministro do Interior ao decretar a dissolução da recorrente, incompetência que, no caso, configuraria o vício de usurpação do poder atribuído ao acto impugnado.
Acaba de se transcrever o despacho recorrido.
Em face do que dele consta, a questão posta desdobra se na averiguação destes dois pontos concretos: se a recorrente é uma sociedade, revestida de personalidade colectiva; se a lei confere ao Governo (e designadamente ao Sr. Ministro do Interior) o poder legal de dissolver as sociedades a que o nosso ordenamento jurídico atribua personalidade.
Como se sabe tem se entendido quase unanimemente entre nós que as sociedades comerciais, assim como as sociedades civis que se constituam sob forma comercial, são pessoas colectivas, desde que satisfaçam aos requisitos exigidos pelo artº 104º do Código Comercial. É, na verdade, o que resulta do disposto no artº 108º do referido diploma legal.
Quanto à outorga da personalidade, o princípio que vigora em relação às associações é o do reconhecimento normativo. Por isso, enquanto que as associações só adquirem personalidade colectiva mediante acto constitutivo de direitos, as sociedades (pelo menos as que revistam forma comercial) adquirem na pelo acto de registo, por acto meramente declarativo.
No caso dos autos a recorrente é uma sociedade constituída de harmonia com o disposto no artº 207º do Código Comercial, que adoptou a forma de sociedade anónima, tendo cumprido todas as prescrições legais exigíveis a esta espécie de sociedades e efectuado o seu registo. É, assim, uma sociedade cooperativa de responsabilidade limitada, a quem a lei reconhece e atribui personalidade.
Podem estas sociedades ser dissolvidas por acto do Governo?
Entendeu que sim o despacho recorrido, invocando, para tal, o disposto no artº 6º do Decº-Lei nº. 39 660.
Vejamos se será assim.
Um dos direitos individuais reconhecidos pela Constituição Política Portuguesa é o da liberdade de reunião e associação, direito que, segundo o texto constitucional, tem de ser exercido sem ofensa dos direitos de terceiro e de modo a não lesar interesse da Sociedade ou infringir os princípios da moral (artº 6º, nº 14 e par. 1º). O exercício dos direitos individuais depende da regulamentação feita em lei ordinária (Cit. artº, & 2º).
Um dos diplomas legais que regulamentam, entre nós, o direito de reunião e de associação, é precisamente o Decreto-Lei nº 39 660, de 20 de Maio de 1954.
Prescreve se no seu artº 6º, «As associações que funcionem em contravenção do disposto neste diploma são equiparadas às associações secretas, sendo aplicáveis àqueles que as dirigem, administrarem ou por qualquer forma participarem na sua actividade, ainda que como simples associados, as sanções previstas na Lei nº 1901, de 21 de Maio de 1935, sem prejuízo do disposto no Decreto-Lei nº 37 447, de 31 de Junho de 1949, quanto a associações ou agrupamentos que exerçam actividades subversivas».
Foi com invocação deste preceito e por aplicação directa da alínea a) do artº 2º da lei nº 1901 e do artº 26º do Decº-Lei nº 37 447, que o acto impugnado dissolveu a recorrente.
É de ponderar, porém, que nenhuma destas normas se destina a regular a constituição, a vida e a extinção das sociedades comerciais. Essas matérias têm assento próprio nos artºs 104º e seguintes do Código Comercial, que expressa e exclusivamente as disciplinaram.
Objecta o Sr. Ministro recorrido que a «Pragma», embora se haja constituído sob a forma de sociedade cooperativa anónima de responsabilidade limitada, não era uma sociedade comercial, por não ter por objecto a prossecução de um fim lucrativo, nem a prática de actos de comércio, nem era uma sociedade civil porque os sócios se não associaram pondo em comum os seus bens ou parte deles, a sua indústria simplesmente, ou os seus bens e indústria conjuntamente com o intuito de repartirem entre si os proveitos ou perdas, que pudessem resultar dessa comunhão, como dizia o artº 1 240º do Código Civil de 1867, vigente à data da sua constituição. Não sendo sociedade comercial, nem sociedade civil sob forma comercial, a recorrente era pessoa colectiva de fim interessado não lucrativo, ou seja, uma associação, não estando, por isso, sujeita ao reconhecimento normativo, mas sim ao reconhecimento por concessão, podendo ser dissolvida por decisão do Ministro do Interior, nos termos e casos em que o podem ser as outras associações.
Não pode, porém, aderir se a este tipo de raciocínio.
É que ele confunde o problema da legalidade da constituição e funcionamento da sociedade, com o da competência do órgão incumbido por lei para conhecer daquela legalidade, sendo este último aspecto o único que interessa à apreciação do vício de usurpação de poder que se atribui ao acto impugnado.
Quer dizer, antes de saber se o substrato do ente colectivo que se constitui corresponde ou não ao tipo legal previsto, é necessário apurar a entidade competente para decidir dessa questão. Ora a argumentação expandida na douta resposta da fls. 47, desenvolve se em sentido precisamente inverso. Aliás, é também imperativo lógico que não pode dissolver se aquilo que não chegou a constituir se. Por isso, e muito adequadamente, o despacho recorrido, para decretar a dissolução da recorrente, começou por afirmar que ela se constituiu «como simples sociedade comercial».
Sendo o âmbito do recurso determinado pelo conteúdo dos actos recorridos não pode a autoridade recorrida, na resposta ao recurso, justificar a prática do acto por razões diferentes daquelas que constam da sua motivação expressa (Marcello Caetano, Manual, 7ª ed. pág. 764).
Esclarecido este aspecto do recurso, o quesito a propor é tão somente este: quem pode dissolver uma sociedade comercial que embora revestindo a forma dessas pessoas colectivas se tenha constituído por lei, ou que se tenha desviado dos objectivos para que foi criada?
E a resposta parece conter se claramente no disposto no artº 147º do Código Comercial: o Governo pode promover (...), por intervenção do Ministério Público, as acções que forem necessárias para se haverem como não existentes as sociedades que funcionem ou se estabeleçam em contravenção das disposições deste Código. Que assim é, vê se da consulta à fonte deste preceito, que foi o artº 58º e seu par. único da lei de 22 de Junho de 1867, segundo o qual o Governo não podia fazer cessar por acto administrativo o exercício de qualquer sociedade anónima legalmente constituída, mas podia promover nos tribunais comuns competentes, por intervenção do Ministério Público, a dissolução das sociedades que funcionassem ou se estabelecessem em contravenção das disposições daquela lei.
E compreende se perfeitamente o sentido da norma, se tivermos em conta que seria inconciliável o funcionamento do princípio do reconhecimento normativo da personalidade das sociedades comerciais, com a atribuição ao Governo da competência para, por simples acto administrativo, as retirar da ordem jurídica.
No caso sub judice, portanto, só os tribunais comuns podiam conhecer, através da propositura da respectiva acção, dos vícios imputados quer à constituição, quer ao funcionamento da sociedade recorrente, em ordem a declarar a sua inexistência jurídica
Substituindo se aos tribunais judiciais para fazer aquela declaração, do acto impugnado mostra se eivado do vício de incompetência, na sua forma específica de usurpação do poder, o que determina a sua anulação contenciosa.
Esta conclusão, como é óbvio, não prejudica, só por si, a licitude de providências ou medidas que o Governo esteja autorizado, por lei, a praticar, mesmo em relação a pessoas colectivas deste tipo, na defesa da ordem pública e na repressão de actividades subversivas.
Por todo o exposto – e considerando prejudicado o conhecimento dos restantes fundamentos do recurso – concedem provimento a este, e, em consequência, anulam o despacho recorrido.
Sem custos.
Lisboa, 11 de Julho de 1969
Jacinto Fernandes Rodrigues Bastos (Relator) – António José Simões de Oliveira – José Alfredo Soares Manso Preto
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