Este blogue é uma extensão de Entre as brumas da memória.

sábado, 26 de outubro de 2013

O herdeiro, São José Almeida, Público, 26/10/2013


O herdeiro

«Ouça, tenho uma boa vida. Se voltei ao comentário político, é porque me quis defender, estava a ser atacado sem defesa. Não sinto nenhuma inclinação para voltar a depender do favor popular.» As afirmações são de José Sócrates antigo primeiro-ministro de Portugal entre 2005 e 2011, indicado para o cargo pelo PS, partido de que era secretário- geral, depois de duas vitórias em eleições, em 2005 com maioria absoluta e em 2009 com maioria relativa. Esta é a forma como Sócrates responde à pergunta sobre uma eventual candidatura sua a Presidente da República, na entrevista ao Expresso.

Para além da questão pessoal de divulgar que tem “uma boa vida” e da confissão, algo ingénua, de que usa a tribuna de comentador político no canal público de televisão para fazer a sua defesa, pois sentia-se atacado, Sócrates revela uma profunda desconsideração pelo que é a democracia política. Numa entrevista em que um dos seus objectivos, como entrevistado, é apresentar-se como um democrata e um intransigente defensor dos direitos humanos – assunto que é o tema central da sua tese de mestrado cujo resultado publica agora em livro –, chega a ser chocante a forma como Sócrates fala da possibilidade de se voltar a candidatar a um cargo político.

Quando o que caracteriza a democracia política é a igualdade de decisão entre todos, ou seja, a garantia de que a escolha política assenta no princípio de “uma pessoa, um voto”, Sócrates revela uma pesporrência que ultrapassa toda a sua anterior retórica. É que falar da hipótese de uma candidatura eleitoral como sendo algo por que se sente “inclinação” e da eleição em si como de uma circunstância em que o candidato se faz “depender do favor popular” manifesta um nível de arrogância, que ultrapassa os níveis de vaidade pessoal que num ou noutro momento da sua vida política demonstrou. A leitura desta passagem leva até a questionarmo-nos sobre se estaria a falar a sério ou a ironizar e sobre o que queria dizer com esta frase. Será que Sócrates aderiu a conceitos de conquista de poder não electivos? Será que é adepto de formas monárquicas de poder em que este se recebe por herança?

A entrevista feita por Clara Ferreira Alves — que não deixa de fora os temas difíceis para o antigo primeiro-ministro — serve para, mais uma vez, Sócrates fazer a justificação e a defesa da sua governação. E, mais uma vez, afirmar, referindo-se ao PEC IV, que tinha uma solução negociada “com a Comissão Europeia e com o Conselho” que estava consubstanciada na “elaboração de um Programa de Estabilidade e Crescimento”, em que o Governo se comprometia com novas “exigências orçamentais” em troca da ajuda financeira que viabilizaria o funcionamento do Estado. E que essa solução foi inviabilizada porque o PSD retirou o tapete ao PS, com o alegado apoio do Presidente da República.

É verdade que ao rejeitar o PEC IV, em Março de 2011, o PSD rompeu o acordo orçamental que tinha estabelecido com o PS no ano anterior e que permitira viabilizar, em Março de 2010, o Programa de Estabilidade e Crescimento (2010-2013), bem como as suas revisões de Maio e de Setembro. E ainda o Orçamento para 2011, negociado entre o ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, e Eduardo Catroga, ex-ministro das Finanças de Cavaco Silva, indicado pelo Presidente da República como mediador do PSD. De facto, o PSD inviabilizou o PEC IV e com isso lançou o país em eleições antecipadas, que previa ganhar.

O que parece mais difícil de compreender é que Sócrates acredite mesmo que a situação hoje em Portugal seria muito diferente do que é, se o seu PEC IV tivesse sido aprovado. É que, ainda que a aprovação do PEC IV não tivesse precipitado a assinatura do memorando de entendimento para assegurar que a União Europeia viabilizava empréstimos financeiros a Portugal, a realidade é que o PEC IV — assim como o PEC III — continha já muito do que eram a essência das orientações políticas que a União Europeia queria impor para alterar o modelo de organização do Estado português. Até porque à subida de impostos e aos cortes na despesa pública existentes já no PEC II no PEC III somaram-se o congelamento de pensões e os cortes no rendimento da função pública. E foi, recorde-se, no Orçamento para 2011 que foi criado o “imposto” sobre o 14.º mês.

Em suma, José Sócrates pode queixar-se do PSD, por Passos Coelho lhe ter tirado o tapete para chegar ele mesmo a primeiro-ministro. Mas não pode dizer que o PEC IV salvava o país da política de austeridade – simplesmente porque foi com Sócrates que a política de austeridade começou e foi Sócrates que cedeu às receitas neoliberais. A diferença entre Sócrates e o que fez e faz Passos é só de grau de intensidade. 
.

Acerca de mim

mjoanalopes[arroba]gmail.com