O Governo já não dispõe de condições para promover tal consenso. O país precisa de entrar num novo ciclo político .
1.O debate orçamental terminou há escassas horas, estou a escrever este artigo na biblioteca da Assembleia da República, ouvindo a vozearia distante dos manifestantes que se aglomeram lá fora. Aqui, nesta vetusta sala impregnada de silêncio, rodeado de estantes que albergam muitas das grandes produções intelectuais do Ocidente, deixo-me invadir pelo espírito das velhas democracias representativas e liberais. Lá fora, uma pequena multidão ululante invectiva os representantes eleitos da República e contesta, com fúria, as mais recentes medidas governamentais. Alguma coisa de muito grave está a acontecer para que os parlamentos se tivessem transformado, em diversas democracias europeias, no alvo privilegiado de manifestantes irados. Como escrevi nesta coluna há algumas semanas atrás, estabeleceu-se e tem vindo a acentuar-se um divórcio radical entre dois países que nunca deveriam desentender-se, o país das instituições e o país das manifestações. É sobre essa ruptura que é preciso pensar.
As democracias contemporâneas integram no seu íntimo uma permanente tensão entre o princípio da representação, que, no limite, apela para um certo ideal aristocrático e um impulso igualitarista radical que aponta no sentido do enaltecimento da participação popular. Em épocas normais, essa tensão gere-se com relativa facilidade, e comporta mesmo uma dimensão criativa. Em épocas de crise económica e social, as coisas funcionam de forma muito diferente. Quando a uma crise dessa natureza se acrescenta outra, bastante mais grave, caracterizada por uma ausência de sentido colectivo, pela descrença em qualquer tipo de configuração do futuro, estão criadas as condições para que as massas entrem num processo de corte radical com as supostas elites.
De entre estas últimas, os representantes políticos nacionais acabam por ser os mais desprotegidos, e por isso mesmo, mais facilmente atacáveis.
A discussão do Orçamento revelou claramente o estado de impasse em que nos encontramos: um Governo desorientado, uma maioria agónica e sedimentada numa réstia de entendimento numa base cínica, uma agressividade discursiva imprópria, um espírito de claque iníquo. O Governo trouxe ao Parlamento um projecto orçamental em que ele próprio já não acredita, como se tornou visível ao longo dos últimos dias. Na verdade, a grande novidade que o primeiro-ministro introduziu neste debate consistiu na proposta que publicamente apresentou ao PS para que este se dispusesse a participar num esforço conjunto, tendo em vista a concretização daquilo que curiosamente definiu como a refundação do compromisso estabelecido com a troika. Não poderia haver confissão mais eloquente do falhanço histórico do actual executivo. Este, ao longo dos últimos dezasseis meses, levou a cabo uma política extremista, inspirada nas referências do pensamento económico neoliberal, desvalorizou o contributo do principal partido da oposição, que com frequência insultou, e enveredou por uma linha de seguidismo acrítico em relação a Berlim no que diz respeito às questões europeias. Essa receita, que subjaz a esta proposta orçamental, estava e está a conduzir o país para o abismo. A austeridade atingiu níveis insuportáveis para largas camadas da população, todos os dias temos notícias de empresas que declaram falência, o desemprego alcançou valores intoleráveis.
Antes das últimas eleições legislativas, Pedro Passos Coelho, que tinha a obrigação de conhecer a real situação do país e da economia internacional, não hesitou em apresentar um programa irrealista do ponto de vista dos compromissos concretos assumidos, ainda que envolvidos numa roupagem ultraliberal que, diga-se em abono da verdade, nunca pretendeu esconder. Como era inevitável, os compromissos irrealistas foram rapidamente abandonados, e subsistiu uma linha de orientação ideológica de todo em todo desadequada face ao momento que o país atravessa. A despesa pública, contrariamente ao que tinha sido demagogicamente prometido, desceu tenuemente. A actividade económica decresceu dramaticamente. As receitas fiscais caíram abruptamente. O Estado entrou em situação de pré-colapso. É tudo isto, em absoluto, imputável a Pedro Passos Coelho e ao seu Governo? É óbvio que não. Estamos a sofrer os efeitos de uma gravíssima crise internacional, enfrentamos as consequências da integração numa zona monetária desprovida de instrumentos fulcrais para a sua própria gestão económica e financeira, e, convém nunca o esquecer, sentimos permanentemente os efeitos dos nossos atrasos estruturais. A responsabilidade do actual Governo não pode, contudo, ser minimizada. Fez opções incorrectas, na hora errada, com propósitos ideológicamente contestáveis, e, com isso, aprofundou a crise que já assolava o país. Enredado no seu labirinto, Pedro Passos Coelho decidiu recorrer a uma derradeira tábua de salvação. O que pretende verdadeiramente o primeiro-ministro? Recuperar a iniciativa política? Relativizar a dimensão do seu próprio falhanço? Comprometer o PS com um programa de redução do Estado social? Talvez um pouco de tudo isto. Seja como for, tenha as intenções que tiver, esta proposta chega tarde de mais. De certa forma, é pena que assim seja.
Nos próximos tempos, o país vai ter que encontrar uma resposta para duas questões essenciais. Como conciliar um programa de redução da dívida pública com uma estratégia de promoção da competitividade económica e de criação de emprego; como explicar às instâncias europeias que só é possível prosseguir por uma via de redução da despesa se não formos obrigados ao mesmo tempo a aumentar drasticamente a receita fiscal por via do aumento radical dos impostos. É aí que se vai decidir o futuro imediato do nosso país, e as duas coisas estão, aliás, profundamente associadas.
Para que tenhamos sucesso nestas iniciativas, de concretização reconhecidamente difícil, precisamos de estabelecer um verdadeiro compromisso histórico entre a esquerda democrática e o centro-direita portugueses. O actual Governo já não dispõe de condições para promover tal consenso. O país precisa de entrar rapidamente num novo ciclo político. O Partido Socialista volta a estar no centro da vida política nacional, readquirindo uma condição de charneira que aumenta a sua responsabilidade imediata. É, por isso, natural que dentro deste partido se estabeleça uma discussão útil entre aqueles que preconizam a solução acima defendida, e alguns sectores mais voltados para entendimentos à esquerda. Essa discussão deve fazer-se sem tabus e sem receios. Pela minha parte, espero que prevaleçam os primeiros, sem que haja a tentação de dispensar o contributo dos segundos. Os próximos tempos vão ser muito interessantes.
Entretanto, anoiteceu. De lá de fora, continuam a chegar alguns gritos. Que nos interpelam no silêncio desta sala. É preciso saber ouvi-los. Talvez digam coisas bárbaras. Nalguns casos recorrem a simplistas e adolescentes. Muitos deles, estão, contudo, a sofrer. Um sofrimento real e profundo. Nenhum representante político estará algum dia à altura do seu lugar se ignorar o sofrimento do povo que representa.
2. Eduardo Ferro Rodrigues proferiu esta tarde na Assembleia da República um dos mais interessantes discursos da legislatura. Cada vez mais me convenço que foi uma pena que este homem sóbrio, sério e denso não tenha sido primeiro-ministro.
.
|