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segunda-feira, 14 de abril de 2008

«O Bloco e o poder»

Pedro Magalhães
Público, 14.04.2008

Com as mais recentes sondagens a mostrarem unanimemente um novo declínio do PSD, um CDS-PP agonizante, um PS aquém da maioria absoluta e o PCP e o Bloco de Esquerda a somarem perto de 20 por cento das intenções de voto, a especulação sobre o que poderá suceder após as próximas eleições aumenta. Do lado da esquerda, Rui Tavares questionava-se há dias, no PÚBLICO, sobre a "insuficiência" de um papel para o Bloco de Esquerda que não vá para além de um mero "partido de resistência". Do lado da direita, o frenesi recente sobre as propostas da lei do divórcio (e no rescaldo do controverso referendo sobre a despenalização do aborto) também não engana e permite discernir o pano de fundo destas discussões: um conjunto de dúvidas, esperanças ou receios sobre um futuro governo socialista cuja estabilidade e políticas possam, de alguma forma, vir a depender do (ou ser influenciadas pelo) Bloco de Esquerda.

O BE tem sido muitas vezes tratado, até nas raras abordagens que dele foram feitas na ciência política, como um partido da "esquerda libertária". Na linguagem cifrada dos politólogos, o termo remete, em primeiro lugar, para partidos que, desde os anos 60, começaram a articular ideias e valores ligados àquilo a que se chamou "pós-materialismo": a ecologia; os direitos das mulheres e de minorias sociais e culturais; e o primado da autonomia e da liberdade individuais, de onde flui uma tolerância em relação a comportamentos e identidades sociais que se desviam da "norma" social. Remete também para partidos, que, situando-se à esquerda, carecem do grau de centralização, hierarquização e disciplina dos partidos comunistas ou sociais-democratas tradicionais, devido quer à sua ligação a movimentos sociais, quer a uma desconfiança ideológica intrínseca (que é parte, de resto, daquilo que os torna atraentes) em relação à forma como é conduzida a actividade partidária convencional. E finalmente, remete para partidos cujas bases e eleitores, ao contrário do que sucede nos partidos de esquerda tradicionais, são em grande medida compostos por classes médias urbanas, jovens e instruídas.

Sabe-se já alguma coisa sobre o que sucede a este tipo de partidos quando se aproximam da esfera da governação. Uma das hipóteses era a de que essa aproximação seria fatal, inevitavelmente frustrando as expectativas dos seus eleitores e apoiantes. Mas a hipótese não se parece verificar. É certo que essa aproximação os obriga a resolver uma série de dilemas. Como conciliar o radicalismo do seu discurso com o pragmatismo necessário para participar de alguma forma na governação? Como conciliar uma matriz organizacional flexível com a necessidade de conceder autonomia estratégica a líderes que possam negociar credivelmente acordos com outros partidos? Como conciliar as denúncias da falta de transparência e corrupção da vida política com a aproximação ao poder? Mas nos vários países em que essa aproximação ocorreu (Finlândia, Itália, França, Alemanha, Bélgica e Suécia, por exemplo), os partidos da esquerda libertária foram encontrando soluções para estes dilemas. Os casos mais bem sucedidos - do ponto de vista da sobrevivência e posterior sucesso eleitoral desses partidos - têm várias coisas em comum: experiências prévias de acordos a nível local e regional antes de se abalançarem ao palco nacional; uma aproximação ao governo central apenas posterior à aquisição de experiência parlamentar suficiente para fornecerem quadros com formação política adequada; a reforma das estruturas partidárias no sentido da sua hierarquização e centralização, sem abandonarem algum grau de distintividade no que respeita à democracia interna; a procura de soluções alternativas à participação plena no governo, em acordos parlamentares que permitem influência política sem se suportarem os custos da responsabilização pelos fracassos; e, finalmente, o exercício dessa influência de forma a "ajudarem" os partidos de centro-esquerda a adoptarem políticas sem grandes implicações distributivas, mas com grande ressonância junto do eleitorado "pós-materialista", ou seja, políticas ligadas a uma agenda de defesa dos direitos de minorias e de liberalização dos costumes. Como o caso belga em 2003 demonstra, isto nem sempre chega para evitar o preço a pagar em termos de tensões intrapartidárias, corte de relações com movimentos sociais e punições eleitorais. Mas há casos de sucesso e, de resto, a perspectiva de um futuro de eterno combate na oposição arrisca-se a ser ainda mais desmobilizadora do que os riscos que advêm da aproximação ao poder.

O que vale, de tudo isto, para o BE? Alguma coisa, mas não tudo. É certo que as mudanças nos estatutos do Bloco, especialmente as de 2007, apontam para um partido cada vez mais centralizado e hierarquizado. É também verdade que a experiência de Lisboa se enquadra quase perfeitamente na estratégia seguida por outros novos pequenos partidos em toda a Europa, sinalizando, apesar de aparentes divergências internas a este respeito, a disponibilidade do BE para se aproximar do poder. Contudo, convém não sobrestimar as semelhanças entre o Bloco e a "esquerda libertária", ou entre Portugal e o resto da Europa. É certo que o partido nasce muito ligado a esta agenda, em alternativa ao conservadorismo cultural do resto da esquerda. Mas o mais irónico é que, apesar da "agenda libertária" do partido gerar grandes perturbações entre vários sectores da opinião publicada, o Bloco parece ter cada vez menos a ver com esses assuntos. Impelido pela competição com o PCP, pelas reduzidas bases do "pós-materialismo" português, pelo centrismo do PS e pela aparente capacidade de atrair a ala esquerda do eleitorado socialista, o BE vem-se progressivamente afirmando cada vez menos como um partido da esquerda libertária - ainda de viabilidade duvidosa em Portugal - e cada vez mais com um partido da esquerda socialista tradicional, opositor aos desvios "neoliberais" do Governo do PS. Uma espécie de "Die Linke" à portuguesa. Eleitoralmente, a estratégia parece correctíssima. A ironia é que, se o perfil anterior até o tornava "comestível" para um governo PS com este primeiro-ministro, o novo perfil torna-o cada vez mais intragável. Em 2009, a busca de uma solução de governação estável pode vir a ser mais necessária do que nunca, mas também mais difícil do que alguma vez foi.
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